Jornalismo científico

:: Decifrando o DNA do Jornalismo Científico

Wilson da Costa Bueno*

      "O debate não é sobre ciência, é sobre confiança e valores. Quando, desde o começo, não há um debate aberto com as pessoas afetadas, as oposições crescem". (1) A opinião de Lori Andress, do Instituto de Tecnologia de Illinois, em recente seminário promovido pela AAAS – American Association for the Advancement of Science (equivalente à nossa SBPC), expressa, ainda que parcialmente, o sentimento que prevalece entre os especialistas sobre o processo de comunicação associado à questão dos transgênicos.
      No fundo, o debate sobre os benefícios e os riscos dos alimentos geneticamente modificados é um exemplo paradigmático das relações, cada vez mais estreitas, entre a produção de ciência e tecnologia e os grandes interesses, políticos, econômicos e comerciais. Mais ainda: incorpora uma vertente cultural (hábitos alimentares dos consumidores), sabiamente explorada pelos multiplicadores de opinião que resistem à sua introdução em todo o mundo.
      A ciência e a tecnologia (e a informação) , nos dias atuais, têm que ser vistas como mercadorias valiosas e, neste sentido, estão vinculadas a compromissos e aspirações que emanam daqueles que as geram. Quase sempre, a ciência e a tecnologia, por uma partilha desigual do conhecimento, estão em mãos dos países considerados hegemônicos e, neles, mais propriamente, das grandes corporações transnacionais.
      Este pano de fundo deve ser considerado na análise, ainda que ligeira como a que empreenderemos aqui, do processo de comunicação da ciência, particularmente aquele que diz respeito à compreensão pública da ciência e da tecnologia, no qual se insere a prática do jornalismo científico.
      A eficácia da divulgação científica esbarra, quase sempre, em inúmeros fatores, dentre os quais se sobressaem o analfabetismo científico da população; a dificuldade natural de se decodificar o discurso científico; a incompreensão e a desconfiança que vigoram na relação entre cientistas e jornalistas e, sobretudo, a diferença inconciliável entre o processo de produção científica e o processo de produção jornalística.
      A literatura brasileira e internacional de Jornalismo Científico tem contemplado estes aspectos ao longo do tempo, mas, por uma opção epistemológica ou política, tem relegado a um segundo plano as conexões entre ciência, tecnologia e poder.
      A nosso ver, ao se concentrar em fatores intrínsecos ao processo de produção jornalística, ignorando os constrangimentos externos que o limitam, esta literatura e os debates que ela suscita não têm permitido uma reflexão mais profunda sobre as barreiras efetivamente estruturais à praxis da divulgação científica.
      A compreensão efetiva destes entraves passa, necessariamente, pela identificação dos elementos que constituem a essência do processo contemporâneo de divulgação científica, compreendida como um ambiente formidável para multiplicação de informações e conhecimentos, em escala planetária, e que guarda uma certa analogia com o genoma humano. Aqui, também temos 4 letras, que se combinam, de várias formas e em gradações e sequências distintas, para formar um organismo complexo (a informação científica) . São elas: CSML.
      C traduz-se por Controle. A produção de ciência e tecnologia, em função dos recursos extraordinários de que se vale, depende cada vez mais da parceria entre os centros geradores de ciência e tecnologia e os patrocinadores, representados, especialmente nos países do Primeiro Mundo (mas este modelo tende a se repetir nos países em desenvolvimento, como o Brasil), por empresas privadas transnacionais. Esta associação implica, obrigatoriamente, no controle não só dos produtos, mas do conhecimento. A idéia romântica de que a ciência é universal e de que os resultados de sua aplicação estendem-se a toda a sociedade fica, definitivamente, afastada. A transferência de tecnologia tem regras próprias, regulada por contratos internacionais, de tal modo que nem todas as nações (e os cidadãos que as constituem) têm acesso a elas, ainda que elas possam ser fundamentais para alavancar o desenvolvimento regional, salvar vidas ou promover o bem-estar social.
      A disseminação do conhecimento também sofre as consequências deste controle, exercido por sistemas complexos que se apropriam da competência desenvolvida pelas novas tecnologias para vigiar grupos organizados, cidadãos e organizações em todo o mundo. Cite-se o caso do Echelon, um complexo sistema eletrônico de espionagem, já amplamente denunciado por países europeus e por especialistas norte-americanos e que estaria a serviço de alguns poucos países e de suas empresas globais. Nunca, em qualquer outra época, a privacidade dos cidadãos esteve tão ameaçada, ainda que se proclamem as vantagens da chamada Sociedade da Informação, sob o argumento falacioso de que, por exemplo, a Internet democratiza o acesso à comunicação planetária. A imensa legião de excluídos tecnológicos, mesmo nos Estados Unidos, reforça a tese de que a democratização do conhecimento e do acesso à inovação tecnológica continua sendo uma utopia.
      S traduz-se por Sigilo. Como o conhecimento produzido pelos centros geradores de ciência e tecnologia é apropriado por interesses econômicos e comerciais (a que se agrega, muitas vezes, o interesse político), o intercâmbio natural entre cientistas é, na prática, obstaculizado. Isso significa, por extensão, que a opinião pública (aqui incluídos os comunicadores da ciência) poderá estar (o que quase sempre ocorre) afastada, num primeiro momento e às vezes por um tempo suficientemente longo, das inovaçôes em ciência e tecnologia, com exceção daquelas que já têm seu domínio reservado em forma de produtos patenteados. A regra em vigor no jogo da produção científica e tecnológica estabelece que os cientistas, antes mesmo do compromisso com a coletividade, têm uma obrigação com aqueles que os patrocinam. Logo, contrariamente ao que se postula, a ciência e a tecnologia não circulam livremente, beneficiando pessoas e nações; pelo contrário, seu fluxo e seu acesso são filtrados por interesses estranhos à produção de ciência e tecnologia. A produção de sementes é um dos Setores mais concentrados no agronegócio e este fato ameaça a autonomia das nações por deixar sob o controle de um grupo reduzíssimo de empresas a oferta de alimentos no futuro. A produção e comercialização de sementes engenheiradas pode ser vista como uma especialização do controle nesta área, o que definitivamente empurra os países emergentes para a periferia do mercado.
      M traduz-se por Monopólio. A divulgação científica é estrangulada por duas modalidades de monopólio, que circunscrevem os dois processos que a definem: o monopólio na produção de ciência e tecnologia e o monopólio da mídia.
      Gradativamente, a concentração, no mundo globalizado, reduz o número de "players" no mercado, pela exigência crescente de capital e escala de produção. Ela se viabiliza por fusões e aquisições que se multiplicam em ritmo avassalador, ameaçando a soberania dos países em desenvolvimento pela interferência progressiva nos mercados nacionais e regionais. As grandes empresas geradoras e detentoras de tecnologia engolem as empresas menores, impedindo o seu acesso aos mercados globais ou promovem conflitos, mediados por organismos internacionais (a OMC, por exemplo) que, invariavelmente, favorecem as organizações sediadas nos países ricos. Dois casos recentes e emblemáticos ilustram esta situação: a pressão efetuada pelo Canadá contra o Brasil (no episódio que ficou conhecido como o da " vaca louca") em defesa de sua empresa privada de construção de aviões regionais – a Bombardier – contra a nossa Embraer; e o recurso dos Estados Unidos na OMC contra a quebra, pelo Brasil, de patentes dos medicamentos contra a Aids. Em ambos os casos, o que estava em jogo era a possibilidade de uma nação emergente exercer a sua soberania, seja buscando espaço no universo (viciado) do " livre comércio" , seja privilegiando o interesse dos seus cidadãos na luta contra a ganância de parcela da indústria farmacêutica mundial.
      O monopólio da mídia não é menos pernicioso para a divulgação científica. Em todo o mundo, a indústria da informação e do entretenimento vem sendo submetida a uma violenta concentração, incluindo, entre outros, veículos de comunicação, o setor de informática e de telecomunicações e as e agências de propaganda. Os especialistas advertem para os riscos da redução da diversidade nesta área, potencializados pela entrada do capital financeiro (fundos de investimento) nos projetos mais ousados do universo "pontocom".
      Na América Latina, e no Brasil em particular, esta concentração é manifesta: aqui, menos de 5 grandes grupos dominam, verdadeiramente, a indústria da informação e do entretenimento, com uma influência espantosa e aterradora sobre a opinião pública. O sistema de concessão de canais de rádio e televisão, definido por interesses políticos e econômicos (em alguns Estados brasileiros, os políticos chegam a dominar 2/3 das emissoras de rádio e TV), esmaga a liberdade de expressão.
      A Internet, ainda que represente potencialmente uma válvula de escape para esta tendência vigorosa em direção ao monopólio, caminha, necessariamente, para a concentração, pelo menos em termos da amplitude da audiência, depois da euforia, logo contida, da criação de empresas pontocom . Hoje, os principais portais estão, com raríssimas exceções, sob a responsabilidade da grande mídia nacional e das empresas tradicionais da velha economia. Restam a alternativa dos conteúdos qualificados e a mobilização empreendida por redes competentes de sites, coordenada por ONGs politica e social engajadas, como a que prevalece para as questões relativas ao meio ambiente, aos direitos das minorias e à condição feminina, por exemplo.
      L, finalmente, traduz-se por lucro. Esta é a alavanca de todos os esforços empreendidos por empresas e governos e há quem a considere como a mais importante na constituição do DNA do processo de divulgação científica contemporânea. Em seu nome, a ética social tem sido agredida a cada instante, como atestam as denúncias de conluio entre cientistas e a indústria tabagista, os lobbies para a liberação precipitada de novas drogas ou para a manutenção da indústria das armas e as doações de empresas de tecnologia para a eleição e legitimação de governos autoritários.
      Ainda que esteja em curso uma reação da opinião pública em todo o mundo, com o concurso de entidades e empresas cidadãs, para a expansão do conceito de responsabilidade social, nota-se um descompasso considerável entre o discurso e a prática, entre os dividendos polpudos a serem pagos aos acionistas e o exercício pleno da cidadania. A nossa querida Petrobrás, embora confesse lucros extraordinários ( e seja reverenciada por isso), continua agredindo o meio ambiente, com vazamentos sucessivos, alguns de monta, como os que atingiram, recentemente, a Baía da Guanabara e o rio Iguaçu, no Paraná, noticiados amplamente pela mídia.
      O debate sobre os alimentos transgênicos não pode ser conduzido à distância destes pressupostos básicos. Em princípio, como atesta pesquisa recém realizada em importantes jornais brasileiros (2), ele tem sido, pelo menos na mídia de massa, empreendido a partir de uma vertente política, com um nível relativamente baixo de informações qualificadas, Embora sob o ponto de vista da divulgação científica, tradicionalmente considerada, isso represente um desvio, é preciso admitir que, dada a importância do tema e das consequências que poderá acarretar para o futuro da humanidade como opção agroalimentar, a questão não pode mesmo se encerrar em sua instância puramente técnica.
      Evidemente, será necessário, para que não permaneçamos à distância do curso natural da história da ciência, que o debate sobre os transgênicos se qualifique e que os interlocutores se dispam dos preconceitos para enfrentá-lo de frente.
      Não vale, no entanto, invocar o inevitável progresso da ciência para fazer valer os interesses da indústria que aposta suas fichas nos milagres da agrobiotecnologia . Os governos, os políticos, os cientistas, os comunicadores da ciência e a própria sociedade têm o direito de saber mais, de exigir que se avalie, com cuidado e intensamente, o seu impacto na saúde e no meio ambiente.
      A divulgação científica pode construir o ambiente propício para esse diálogo, mas ela deve, antes disso, libertar-se destes condicionamentos que o seu DNA lhe impõe. Urge, pois, promover uma manipulação genética no processo atual de divulgação científica, introduzindo-lhe os genes benéficos da liberdade, da responsabilidade e do interesse público.
      É fundamental, para tanto, continuar defendendo a tese de que a ciência e a tecnologia contemporâneas não podem mais ser assunto exclusivo de cientistas, de institutos e empresas de pesquisa, e de seus patrocinadores. Todos nós temos o direito inalienável de participar do processo democrático de avaliação dos impactos sociais da ciência e da tecnologia. Por mais que respeitemos os nossos cientistas, as nossas universidades, os nossos institutos de pesquisa e as nossas empresas e reconheçamos o seu trabalho e o seu empenho para construir um mundo melhor, não podemos, sob nenhuma hipótese, deixar que decidam por nós. Esperamos que os comunicadores da ciência, conscientes e engajados, contribuam para que possamos assumir, com competência, o papel que nos cabe neste debate.

Referências bibliográficas

1) EUA reconhecem necessidade de mais controle para transgênicos. Folha de S. Paulo, 19/02/2.001, p. A-14

2) Bueno, Wilson da Costa. As sementes da discórdia. O debate sobre os transgênicos em 6 importantes jornais brasileiros. Comunicação apresentada no 1º AGRICOMA - Congresso Brasileiro de Comunicação em Agribusiness e Meio Ambiente, realizado em São Paulo, em outubro de 1.999.

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* Wilson da Costa Bueno é jornalista, professor do programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da UMESP e de Jornalismo da ECA/USP, diretor da Comtexto Comunicação e Pesquisa.

 
 
 
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