Wilson da Costa Bueno*
A ciência e, sobretudo
as suas inúmeras e revolucionárias aplicações, têm sido
contempladas, freqüentemente, com espaços e tempos generosos
nos meios de comunicação de massa, em todo o mundo.
Uma análise mais acurada
desta presença na mídia revela, no entanto, que nem sempre
o tom das manchetes destaca o caráter emancipador da ciência
e da tecnologia; pelo contrário, alimenta suspeitas contra
empresas, universidades e mesmo cientistas, acusados de
privilegiarem, na produção e na divulgação de suas pesquisas,
interesses políticos, econômicos, comerciais ou pessoais.
Os exemplos se multiplicam
aqui e acolá, ilustrando um quadro que é, muitas vezes,
pintado, ostensivamente, com cores desfavoráveis para o
mundo da ciência.
Empresas do setor farmacêutico
são condenadas, nos EUA, a pagar multa de milhões de dólares
por terem constituído um cartel poderoso no segmento das
vitaminas. A indústria tabagista é denunciada pela cumplicidade
com cientistas, subvencionados para realizar e divulgar
pesquisas com o objetivo de manipular a opinião pública
e diminuir a pressão contra os fabricantes de cigarros.
Os alimentos transgênicos enfrentam resistência de entidades
de defesa do consumidor e ambientalistas e são objeto de
um debate acalorado na comunidade científica, dividida entre
os seus benefícios e prejuízos. Parcela significativa da
comunidade européia se levanta contra um sistema de espionagem
eletrônica o Echelon mantido pelos Estados
Unidos e alguns países de língua inglesa. Da mesma forma,
nos EUA, consumidores e importantes segmentos da sociedade
civil repudiam o "carnivore", programa em uso
pelo FBI, poderosa Polícia Federal Americana, que monitora
os computadores pessoais e empresariais, vasculhando mensagens,
desmascarado pela imprensa dos Estados Unidos. O mundo assustado
toma ciência da autorização da Grã-Bretanha para que seguradoras
utilizem testes de DNA para identificar pessoas portadoras
de doenças, abrindo um precedente perigoso para a discriminação
genética. Um livro, recém lançado nos Estados Unidos, provoca
um verdadeiro escândalo na comunidade científica, ao acusar
antrópologos de terem realizado, sem autorização, experiências
com os índios ianomâmis da Venezuela, visando testar uma
vacina contra o sarampo, o que, segundo seu autor, teria
provocado inúmeras mortes entre os indígenas.
Este novo cenário evidencia,
claramente, que a produção de ciência e tecnologia deixou,
há muito, de ser preocupação exclusiva dos cientistas e
que a sua divulgação deve estar respaldada em pressupostos
e atributos que extrapolam a comunicação científica, e em
particular o jornalismo científico, tradicionais.
As relações entre ciência/tecnologia
e sociedade, permeadas por um rede complexa de interesses
e compromissos, exigem uma nova postura do jornalismo científico,
agora, mais do que nunca, comprometido com uma perspectiva
crítica do processo de produção e divulgação em ciência
e tecnologia.
Agrega-se a este quadro
uma nova realidade: a concentração dos meios de comunicação
e das agências de publicidade, fruto de um processo avassalador
de fusões e aquisições. Esta concentração, acelerada pela
emergência das novas tecnologias e pela planetarização dos
mercados, faz ressaltar a supremacia incontestável dos países
hegemônicos e das empresas transnacionais.
A literatura e o debate
sobre jornalismo científico precisam, portanto, incorporar
estas novas questões, ampliando o conjunto de temas que
os têm caracterizado nos últimos anos.
Evidentemente, não podemos
ignorar aspectos que permanecem sendo fundamentais na comunicação
científica e que têm contribuído para reduzir a sua eficácia.
A relação entre cientistas e jornalistas, amplamente explorada
nos Congressos de Jornalismo Científico, continua tensa,
talvez tornada ainda mais conflituosa pela incidência de
interesses extra-científicos, que se localizam tanto na
produção da ciência e da tecnologia como na produção das
notícias. A decodificação do discurso científico pelo público
leigo ainda é um obstáculo a ser vencido, particularmente
nos países emergentes em que o analfabetismo científico
se aprofunda, dada a velocidade com que novos fatos, conceitos
e processos são trazidos à tona, notadamente em determinadas
áreas, como a genética humana, a astrofísica, as ciências
da computação, as telecomunicações e a segurança alimentar,
para só citar os 5 exemplos mais contundentes.
Na prática, com esta
nova postura, não pretendemos incitar os jornalistas a um
confronto com a comunidade científica ou com os patrocinadores/produtores
da ciência e da tecnologia, mas resgatar o caráter pedagógico-crítico
do jornalismo científico, evitando que, de maneira ingênua,
os profissionais de comunicação estejam a serviço de interesses
que atentem contra a cidadania e a função social da ciência.
Com isso, repudiamos
a visão conservadora que costuma enxergar os jornalistas
como simples intermediários no processo de divulgação da
ciência. A importância da ciência e da tecnologia para o
cidadão do novo milênio, extremada pelo advento da Sociedade
da Informação e da Nova Economia, requer de todos, e especialmente
dos multiplicadores de opinião, uma tomada de posição. Exige
uma mobilização permanente, aquele espírito cético a que
se referia Carl Sagan (1), sob pena de nos vermos, jornalistas
científicos, de mãos atadas para enfrentar os desafios da
nova comunicação científica, que aproxima, de maneira vertiginosa,
e muitas vezes sutil, informação e marketing, ciência e
mercado, tecnologia e capital financeiro.
Temos a convicção de
que esse papel não deve e não será desempenhado apenas pelos
jornalistas científicos, mas por todos aqueles, especialmente
os cientistas, que se preocupam com o sigilo e o controle
da informação e dos resultados de pesquisa, mercê da relação,
que pode ser espúria (como no caso dos cientistas e a indústria
do fumo), entre patrocinadores e produtores de ciência e
tecnologia.
Em princípio, podemos
nomear pelo menos 3 grandes temas que deveriam ser, de imediato,
objeto de preocupação dos jornalistas científicos, visto
que, pela sua amplitude e complexidade, afetam, profundamente,
a "praxis" jornalística, em especial aquela voltada
para a divulgação do processo de produção científica e tecnológica.
Na verdade, estes temas
são interdependentes e devem ser tratados como tal, se pretendemos,
efetivamente, estabelecer uma estratégia para orientar o
jornalismo científico em direção à democratização do conhecimento
científico. Alguns deles se localizam mais especificamente
no âmbito da produção da ciência e da tecnologia e da sua
legitimação junto à sociedade (a fetichização da tecnologia
e a questão da ética na ciência devem ser aqui consideradas);
outros referem-se às novas circunstâncias que definem a
indústria cultural moderna, cada vez mais integrada ao mercado
e, portanto, mais vulnerável à interferência dos inúmeros
"players" da comunidade financeira, que privilegiam
a lucratividade dos seus negócios em detrimento da qualidade
da informação.
O fato de abordarmos,
neste trabalho, cada tema individualmente cumpre apenas
um objetivo pedagógico. Com isso, fica mais fácil explicitar
alguns aspectos relevantes que os circunscrevem, contribuindo
para a sua compreensão. Sempre que possível, no entanto,
estaremos buscando tangências entre estes temas, chamando
a atenção para sua interdependência.
As novas
mercadorias num comércio viciado
Declarar que a ciência,
a tecnologia e a informação se constituem nas mercadorias
mais valiosas do mundo moderno é certamente repetir o óbvio.
Inúmeros autores, com grande propriedade, já o fizeram antes.
(2) O que nos interessa, neste contexto, é ressaltar o fato
de que, enquanto mercadorias, elas se atrelam a um espectro
amplo de interesses e compromissos, marcado pela ação de
lobbies e de sistemas de controles, quando não de ações
deliberadamente espúrias (como as que promovem a constituição
de cartéis e monopólios), que visam garantir privilégios
para os que dominam os universos da ciência, da tecnologia
e da informação.
A própria comunidade
científica tem, repetidamente, se ocupado desta questão,
alertando para a relação intrincada entre publicações científicas
e estratégias de Relações Públicas das grandes empresas
, bem como para os mecanismos de controle e sigilo da informação
que decorrem da ação dos patrocinadores de projetos científicos.
Chamam a atenção, ainda, para a politização (e ideologização)
dos temas científicos e tecnológicos, cada vez mais integrados
aos programas dos governos e às pautas dos congressos, como
a ação antitruste desencadeada contra a Microsoft nos Estados
Unidos, e a discussão sobre os transgênicos e a proteção
à biodiversidade, de há muito presentes na agenda das comissões
do Congresso brasileiro.
Alguns exemplos são
esclarecedores e merecem ser, de pronto, mencionados.
A recente eleição presidencial
norte-americana reforçou o vínculo entre o poder político
e o econômico, escancarando a todos a interface entre a
administração pública e os interesses empresariais. Pudemos
saber, por exemplo, dada a transparência das informações
que costumam caracterizar a nação mais rica do mundo, quando
de seus embates internos, (lobby regulamentado, vigilância
dos meios de comunicação de massa etc) que "as principais
companhias farmacêuticas dos Estados Unidos e suas organizações
comerciais gastaram não menos de U$46 milhões em propaganda
política e doações para influir nas eleições deste ano",
preocupadas pela "possibilidade do governo incluir
um benefício para os medicamentos prescritos, no sistema
de saúde pública Medicare e pelas características que terá
o programa." Jeff Trewhitt, porta-voz da Pharmaceutical
Research & Manufactures of America (PhRMA), maior grupo
comercial do setor, sediado em Washington, foi enfático
ao justificar este investimento: "nos preocupa bastante
os controles sobre preços... e faremos tudo o necessário
para que seja ouvida nossa opinião". (3) Nem mesmo
o Vale do Silício ficou ausente do frenesi das eleições,
invadido que foi pelos candidatos à Casa Branca (Al Gore
e George Bush), interessados tanto nos dólares das empresas
bem sucedidas como em "ganhar algo mais intangível
e igulamente valioso: ser identificado como um candidato
do futuro e estar ligado ao pensamento avançado da alta
tecnologia". Importantes coordenadores de ambas as
campanhas não têm dúvida da importância da conecção entre
política e tecnologia avançada. Joe Andrew, presidente do
Comitê Nacional Democrata, ressalta que este não é um jogo
de números, mas de imagem. Os líderes da alta tecnologia
são como celebridades. Eles são avalizadores e esse aval
é importante", com o que concorda Margita Thompson,
consultora de alta tecnologia da campanha de Bush: "o
Vale do Silício é um modo de pensar, de desafiar as coisas,
uma mentalidade de olhar para frente. O governador Bush
quer captar isso". (4)
A gigante Microsoft,
acuada pelo governo norte-americano, instigado por concorrentes
desejosos de ver ruir seu poderoso império, encetou uma
campanha para proteger a sua supremacia na área de softwares,
valendo-se, inclusive, de ação eticamente condenável que
envolveu a mídia americana. A empresa, segundo informação
do The Guardian, reproduzida em jornal brasileiro,
admitiu "ter pago US$150 mil para publicação de anúncios
em jornais que apoiavam sua disputa jurídica contra o governo
dos Estados Unidos... às vésperas de um dia importante na
sua ação judicial antitruste.". A confissão não seria
problemática (afinal de contas, numa democracia, todos têm
o direito de defender os seus interesses), se a Microsoft
não tivesse tentado disfarçar o seu vínculo com a mensagem
publicitária veiculada pelos jornais. A peça de publicidade,
segundo o The Guardian, apareceu " em julho
(de 1.999), em nome da consultoria Independent Institute,
na forma de uma carta aberta assinada por 240 economistas
e outros especialistas. A empresa pagou também a viagem
de avião para Washington do presidente da consultoria para
participar de uma entrevista coletiva, quando a campanha
foi lançada. Ao menos dois signatários da carta, Stanley
Liebowits e Steve Margolis, trabalham como consultores ocasionais
para a Microsoft". (5) A Organização Mundial de Saúde
(OMS), recentemente, através de relatório, afirmava ter
conhecimento de uma estratégia desenvolvida por uma grande
empresa tabagista, a Philip Morris, conhecido por "Plano
de Ação de Boca Raton", que tinha como objetivo desacreditar
a instituição, empenhada em disseminar informações sobre
os malefícios do fumo para a saúde da população mundial.
O plano, segundo a OMS, incluia a infitração de "um
executivo do ramo de alimentação do grupo Philip Morris
para trabalhar no escritório de segurança alimentar da OMS
e a deflagração de ataques à organização em meios de comunicação
de massa... O documento cita artigos publicados no The
Wall Street Journal com críticas contra a burocracia
da OMS e suas políticas de alocação de recursos como parte
da campanha de descrédito... O relatório entregue à diretora
geral da OMS (a norueguesa Gro Harlem Brundtland) transcreve
correspondência trocada durante quatro anos entre o cientista
italiano e a indústria de cigarros na qual é discutida sua
participação em estudo sobre pesticidas usados nas plantações
de tabaco. Também há menções a documentos da Philip Morris
em que um ex-diretor da OMS aparece como fornecedor de documentos
da organização para a empresa e como receptor de discursos
preparados por executivos da indústria para ele se pronunciar.
(6) Na mesma matéria, a gerente de comunicações da Philip
Morris, Elizabeth Cho, negava as informações do relatório,
embora tenha admitido que o cientista mencionado havia sido
contratado durante um curto período de tempo durante a década
de 90 . Admitia o Plano de Ação de Boca Raton, mas garante
que ele jamais havia sido implementado.
A Philip Morris tem,
ao longo do tempo, comparecido exaustivamente na mídia.
Já em 1.998, um jornal de Minnesota Saint Paul
Pioneer Press - publicou notícia, revelando que cientistas
haviam sido subvencionados pela empresa para "escrever
cartas a importantes publicações científicas e a um jornal,
desacreditando um relatório do governo americano sobre o
fumo passivo...Ao todo, 13 cientistas teriam recebido US$156
mil por cartas e artigos que questionavam o relatório da
Enviromental Protection Agency (EPA) de 1993. Os registros
de pagamento de cientistas estavam entre as milhares de
páginas do processo em que o Estado tentou reaver dinheiro
gasto no tratamento de doenças relacionadas ao cigarro."
(7) Ainda em 1.998, o jornal O Estado de S. Paulo informava
que, no Estado de Minnesota, estava sendo instaurado um
processo contra a empresa por ter aconselhado sigilo para
descobertas sobre os prejuízos causados pela nicotina. Diz
o lead da matéria, assinada por Saundra Torry, do The
Washington Post: "A Philip Morris, gigante da indústria
do cigarro, traçou a estratégia de ocultar do governo os
estudos sobre os efeitos prejudiciais do fumo ao organismo
quinze anos antes de a Drug and Food Administration (FDA)
adotar a controvertida medida de regularmentar os cigarros...
O documento um em meio a uma ampla série de papéis
lidos na Suprema Corte... discute a estratégia legal
traçada pela companhia para ocultar pesquisas que pudessem
favorecer as tentativas de transferir a regulamentação do
tabaco para a FDA, orgão que, de acordo com o documento,
tem, como se sabe, interesses e poderes opostos aos
da indústria." (8) Este ano, o jornal Valor Econômico,
em reportagens especiais, mostrou, reproduzindo documentos
da empresa, que cientistas de importantes universidades
brasileiras haviam integrado uma rede de pesquisadores que
colaborou com a indústria tabagista na década de 90. Este
apoio se deu através de pesquisas, financiadas pela indústria,
que tinham como objetivo "colocar em dúvida os estudos
sobre fumo passivo, alimentar a controvérsia no mundo científico
e deter as leis antitabagistas". O jornal continua:
" a indústria criou o Centro de Pesquisas do Ar em
Ambientes Fechados (CIAR) para financiar estudos sem que
a iniciativa das empresas por trás dos projetos fosse percebida
e, com dinheiro do CIAR, a indústria montou grupos de pesquisa
na Europa, na Ásia e na América Latina. Todos eram monitorados
por advogados contratados pelos fabricantes de cigarros."
(9) Na mesma matéria, o jornal indicava que os dirigentes
da indústria do tabaco estavam preocupados até com a ascensão
da esquerda no Brasil, temendo um "ataque unificado
ao fumo motivado por questões de saúde pública" e que
um grupo de epidemiologistas brasileiros colaborou com os
seus objetivos. Em outra reportagem, o mesmo jornal demonstra
que a Abifumo (Associação Brasileira da Indústria do Fumo)
havia discutido um plano para financiar cientistas já em
1.982. ( 10) Embora possa parecer surrealista, desde 1.999,
às vésperas do lançamento do filme O Informante (The Insider),
nos Estados Unidos, que relata as pressões da indústria
do tabaco para manter vivo o seu negócio, os fabricantes
de cigarro passaram a desencadear campanhas antifumo, ao
mesmo tempo em que a direção da Philip Morris surpreende
o mundo, proclamando aos quatro ventos que a nicotina é
uma substância nociva e causa dependência. (11) Inúmeros
governos, pesquisadores e empresas, notadamente no ramo
farmacêutico ou da florescente indústria da biotecnologia,
também são alvo dos meios de comunicação, mercê de escândalos
que se multiplicam.
O Governo da Islândia,
em decisão inédita e assustadora, vendeu para uma empresa
de biotecnologia americana, chamada deCode o direito de
exploração do DNA da população do país. Os registros do
DNA dos 270 mil islandeses, comprados por cerca de US$16
milhões, permitirão a empresa "traçar a origem de doenças
genéticas por gerações e, com isso, identificar genes associados
a complicações importantes, como diabetes, mal de Alzheimer,
certas formas de câncer e de doenças cardíacas". ..
Eles são importantes "porque se trata ,provavelmente,
da população mais homogênea do mundo. Houve pouca imigração
desde a chegada dos viquingues à ilha, há cerca de mil anos.
Além disso, os registros médicos do país estão entre os
mais completos do mundo. É possível encontrar certidões
de óbito e notificações de doenças desde o século XVIII,
quando esse tipo de registro começou a ser feito na ilha."
(12) A iniciativa, que representa uma ameaça à violação
dos direitos do homem sobre seu próprio corpo, ao que parece
já tem seus seguidores: as cidades de Talana e Pedrasdefogu,
pequenas e pobres cidades da Sardenha, Itália, estão interessadas
em vender o DNA dos seus quase 4 mil habitantes, que também
obedecem a uma surpreendente homogeneidade genética. (13)
A posse dos registros
de DNA, por empresas privadas, tem implicações seríssimas
para a vida dos cidadãos, em todo o mundo, e pode desencadear
um processo amplo de discriminação genética. Na prática,
isso já vem ocorrendo, segundo denúncias publicadas pelos
veículos de comunicação, inclusive com a autorização dos
governos, mesmo de nações do primeiro mundo. Ver a respeito
a matéria assinada por Darlene Menconi na revista Isto É,
de 18/10/2.000, que relata a história de Terri Scargent
e de uma assistente social, ambas penalizadas nos Estados
Unidos com a perda de seus empregos em virtude de seus históricos
médicos e de seus genes potencialmente perigosos. "De
acordo com o centro americano de saúde pública Shriver,
em Massachusetts, há registros de pelo menos 582 casos de
pessoas rejeitadas para oportunidades profissionais ou pelo
plano de saúde por conta de suas falhas genéticas.
Num artigo recente, o jornal inglês Guardian Weekly
revela que existem pelo menos 200 queixas formais de discriminação
por motivos genéticos nos EUA. (14)
Os jornais estampavam
na primeira quinzena de outubro de 2.000 a notícia, divulgada
mundialmente pela BBC, de que o governo britânico estaria
prestes a liberar a utilização de testes genéticos a candidatos
a seguros de vida. Isso significa que as seguradoras poderão
dispor de uma informação vital para aumentar a lucratividade
dos seus negócios: sabedoras da predisposição de um cliente
a uma determinada doença, poderão ou recusá-lo ou mesmo
aumentar o valor do seguro para cobrir possíveis prejuízos
no futuro. A medida, refutada por especialistas de renome
internacional, causa estupefação. Segundo Glenn McGee, do
Centro de Bioética da Universidade da Pensilvânia, nos Estados
Unidos, "isso abre a porta para a discriminação genética
numa época em que os testes são ainda imprecisos",
citando "o teste para detectar o BRCA1, um gene ligado
ao câncer da mama, cuja eficiência é de apenas 60%."
Para Marco Segre, presidente da Sociedade Brasileira de
Bioética, "isso é uma invasão da privacidade genética".
(15)
A utilização de segmentos
da população, geralmente crianças, prisioneiros e deficientes
como cobaias humanas povoam os relatos recentes de atrocidades,
cometidas em nome da ciência.
É o caso dos bebês de
orfanatos e albergues australianos, da cidade de Melbourne,
submetidos a testes feitos com vacinas experimentais contra
a herpes, por exemplo, segundo denúncia do jornal australiano
The Age. "Nos testes mais longos, continua o jornal,
350 crianças enre 3 e 36 meses foram injetadas com doses
de adulto de vacinas experimentais contra gripe para testar
reações tóxicas." (16) Também está na mesma situação
o apartheid sul-africano que chegou a realizar uma pesquisa
para desenvolver uma bactéria capaz de matar ou pelo menos
causar infertilidade somente a pessoas da raça negra. Segundo
o cientista Daan Goose, responsável por um laboratório clandestino
naquele país, o projeto, conduzido nos Laboratórios de Investigação
Roodeplaat, nas cercanias de Pretória, não obteve sucesso,
mesmo porque foi interrompido com o fim do regime, mas o
produto, provavelmente, "poderia ser distribuído ...
por meio de sua mistura à cerveja de sorgo ou à farinha
de milho (consumidos quase que exclusivamente pela população
negra) ou usando como pretexto uma campanha de vacinação.
" Daan Goose admitiu à comissão que investigou o programa
sul-africano de guerra química e biológica "ter errado
ao trabalhar para este tipo de projeto, atribuindo sua conduta
à histeria do momento. (17) Merecem também repúdio
o Instituto Nacional de Saúde e o Centro de Prevenção e
Controle de Doenças dos EUA, que realizaram um experimento
na República Dominicana, na Tailândia e 4 países africanos,
junto a mais de 12 mil grávidas, com o objetivo de descobrir
um método mais econômico de evitar que mãe transmita ao
feto o vírus do HIV. Ocorre que mais de 30% destas mulheres
foram ludibriadas, ingerindo placebo ao invés do medicamento.
Da mesma forma, não há como justificar a utilização, agora
finalmente comprovada, de meninos, deficientes mentais,
do interior do Estado de Massachusetts, nos EUA, durante
a década de 40, como cobaias humanos, oferecendo-lhes, na
merenda escolar, mingau de aveia contaminada com isótopos
radiativos. A pesquisa, patrocinada pela Forças Armadas
americanas, pretendia avaliar as consequências da radiação
no organismo. (19). Os milhares de prisioneiros curdos submetidos
a testes de armas químicas e bacteriológicas pelo Iraque;
a inoculação de bactérias causadoras de peste bubônica,
antraz, febre tifóide e cólera pelos japoneses aos prisioneiros
chineses durante a II Guerra Mundial, a purificação racial
empreendida pela Suécia e outros países nórdicos, que condenava
à esterilização até mesmo mulheres míopes, e as atrocidades
cometidas pelos médicos nazistas, sob a tutela de Josep
Mengele, em Auschwitz, são mais alguns exemplos destes crimes
perpetrados em nome da ciência.
O escândalo mais recente
envolve a obra recém lançada nos Estados Unidos (Darkness
in El Dorado, Trevas em El Dorado), de autoria do jornalista
Patrick Tierney, e que acusa antropólogos americanos de
terem realizado experimentos com os índios ianomâmis, na
Venezuela. Embora as denúncias , que estão dividindo a comunidade
acadêmica e respingando, inclusive, sobre um cientista brasileiro,
ainda precisem de uma confirmação definitiva (que o autor
e outros pesquisadores admitem que já existe), o certo é
que a mídia, em todo o mundo já tomou partido pró-indígenas,
talvez pelos deslizes éticos de empresas, pesquisadores
e governos, relatados nas últimas décadas. (20) Só para
não deixar sem menção, lembramos, finalmente, dos crescentes
processos de recall , desencadeados pelas grandes montadoras
internacionais, muitas vezes, tardiamente, pois foram precedidos
de centenas de mortes de motoristas desavisados. Pela menos
em dois casos, Ford/Firestone e Mitsubishi, há provas contundentes
de que as empresas sabiam antecipadamente dos problemas
existentes nos carros que fabricavam, mas preferiram mantê-los
em segredo para proteger seus lucros.
Mas os relatos de relações
espúrias e éticamente condenáveis não se restrigem ao campo
da ciência e da tecnologia, mas incorporam, também, a indústria
cultural e, muito particularmente a comunicação científica.
Os meios de comunicação têm, de caso pensado ou por ingenuidade
(incompetência, despreparo?), se tornado cúmplices de interesses
políticos, econômicos e comerciais, atuando como autênticos
porta-vozes de indústrias, governos, institutos de pesquisa
ou governos mal intencionados. Em alguns casos, fica difícil
distinguir, dentre o noticiário, também no de caráter científico,
os limites entre a informação e o marketing, podendo ser
identificados com alguma frequência, na mídia, releases
de imprensa, emitidos por empresas e entidades, travestidos
de notas e notícias confiáveis.
Já se tornaram emblemáticos
o episódio da fusão a frio, amplamente noticiado pelos meios
de comunicação em todo o mundo, e que se constitui num espetáculo
de promoção pessoal de pesquisadores em busca dos holofotes
da fama, e as insistentes descobertas de medicamentos revolucionários
(Prozac, Xenical, Viagra etc), "cases" de marketing
farmacêutico vendidos pela mídia como exemplos de autêntica
informação científica.
Nos casos das empresas
automobilísticas já apontadas, será interessante observar
como a mídia, alheia aos problemas que acabariam vitimando
os usuários daquelas potentes e modernas máquinas, e seduzida
por vultosas e premiadas campanhas de relações públicas
e programas de assessoria de imprensa, lhe deu guarida,
produzindo cadernos e chamadas de capa para aliciar consumidores
incautos. Uma cumplicidade informativa, certamente recheada
de matérias sobre inovações tecnológicas, cujas fontes maiores
foram os altos dirigentes das empresas e seus sofisticados
"kits" de imprensa.
Compete ao jornalista
científico, consciente destes riscos, vestir o uniforme
do ceticismo, tão a gosto de Carl Sagan e, mais recentemente,
de Richard Dawkins (21), levantando suspeitas sobre as informações
que recebe e buscando desvendar os interesses e compromissos
subjacentes às fontes de que se vale para produzir suas
matérias sobre o propalado desenvolvimento científico e
tecnológico.
A parceria entre produtores
e patrocinadores de ciência e tecnologia traz, em contrapartida,
uma restrição ao trabalho da imprensa, submetida às normas
de sigilo e controle, que, na verdade, se estendem também
à comunidade científica e empresarial.
Os meios de comunicação
têm trazido à tona esta questão, particularmente explicitada
por pesquisadores preocupados com à restrição exacerbada
ao fluxo de informações nos meios científicos, motivada
pela ingerência daqueles que patrocinam os projetos em ciência
e tecnologia.
Segundo Dorothy Nelkin,
socióloga da Universidade de Cornwell, "o sigilo viola
a natureza social da ciência, a idéia de que a ciência é
compartilhada, que é uma atividade cumulativa"... "Uma
pesquisa feita entre 1.200 acadêmicos de 40 universidades
mostrou que 12% dos que tinham vínculos com indústrias disseram
que suas pesquisas se tornaram informações secretas para
proteger seu valor como propriedade. Além do mais, 24%
responderam que os resultados de suas pesquisas são propriedade
do patrocinador e não podem ser divulgados sem sua autorização.
Se observarmos que estas afirmações já tem mais de 10 anos
e que os vínculos entre produtores de ciência (universidades,
institutos e centros de pesquisa e pesquisadores) se aprofundaram,
enormemente, na última década, chegaremos à triste, mas
realista, conclusão, de que a informação científica, matéria
prima do jornalista científico, está se tornando cada vez
mais escassa.
Acresce-se a esse fato
a pressão exercida pelas revistas científicas, interessadas
em obter exclusividade dos resultados das pesquisas, e que
chegam a penalizar os cientistas que se atrevem a democratizar
a informação. A imprensa publicou há anos um episódio que
envolveu o The New England Journal of Medicine, uma
das mais importantes publicações da área médica em todo
o mundo. Acontece que, de maneira pioneira, um estudo sobre
a eficácia da aspirina como preventivo dos ataques cardíacos,
foi publicado, em primeira mão, em outra fonte que não o
The New England, gerando, segundo os jornais da época,
um reação de revolta nos seus editores, traídos pelo vazamento
da informação que, ao chegar à agência Reuters, ganhou repercussão
internacional. Isso porque a revista se vangloria de publicar
com exclusividade todos os avanços da área da Medicina.
Levantando o assunto, o The New York Times descobriu
que a publicação não garante esta exclusividade apenas pelo
seu prestígio e tradição (tem quase 200 anos de circulação),
mas porque adiciona a estes atributos um "outro conteúdo
mágico: o alerta de seus editores `a comunidade científica
de que, caso suas descobertas sejam publicadas antes do
Journal, correm o risco de serem por ele ignoradas".
O The New York Times encontrou dificuldade para encontrar
um médico ou cientista que quisesse enfrentar a conceituada
revista, o que faz com que a obediência às regras de publicação
seja total. O correspondente do Jornal do Brasil, Sílvio
Ferraz, em matéria sobre este episódio, conclui: "As
empresas farmacêuticas adotam como política divulgar seus
press releases para coincidir com a publicação das notícias
no jornal ou mesmo que cheguem à mesa dos editores dos jornais
não especializados com 24 horas de atraso, garantindo, dessa
forma, a primazia do Journal. Seu editor se defende
afirmando não ser a política do jornal inibir o contato
entre cientistas e jornalistas, mas concorda que faz a advertência
de que a eventual divulgação da descoberta pode prejudicar
a sua publicação em suas páginas. Em outras palavras: quem
antecipar para outra publicação seus achados não será laureado
nas páginas dos Journal. Na prática, muitos cientistas
declaram-se inibidos em discutir suas pesquisas com jornalistas,
pelo temor das consequências. É tanta a importância dada
pelos editores do Journal à exclusividade, que os exemplares
distribuídos à imprensa vêm sempre carimbados com o embargo
de divulgação, e precisando a hora a partir da qual está
liberado o anúncio de seu conteúdo." (23)
É preciso sempre ter
em mente de que não é impossível (como diria Carl Sagan,
é melhor duvidar sempre) existir atrás dos relatos de pesquisas
tidas como científicas interesses inconfessáveis, destinados
a provocar ambiguidades e a falsear verdades. Em matéria
recém publicada na imprensa brasileira, o jornalista Ricardo
Balthazar cita uma organização chamada Arise, fundada no
final da década de 80, e integrada por cerca de 50 cientistas,
quase todos eles europeus, que tem como objetivo divulgar
resultados de pesquisa que vão ao encontro dos grandes interesses
empresariais. Segundo Balthazar, alinham-se entre seus patrocinadores
a Philip Morris, a Coca-Cola e a Nestlé e, por isso, suas
pesquisas geralmente caminham para confortar os que fumam
demais ou que não resistem a um alimento calórico . "Estudos
patrocinados pela organização salientam os efeitos calmantes
do fumo. Sustentam que uma barra de chocolate por dia pode
aumentar em até 52% o nível de tranquilidade de um indivíduo.
Afirmam que o café ajuda a exergar melhor. E garantem que
as dietas saudáveis recomendadas por médicos e autoridades
se apóiam em pesquisas de caráter no mínimo duvidoso."
(24)
São tantas as informações
disponíveis na mídia com este teor que é lícito imaginar
a grande produtividade da Arise e, ao mesmo tempo, a inexistência
de filtros na imprensa para preservar os leitores, telespectadores
e radiouvintes deste noticiário comprometido. Um dos desafios
do jornalismo científico é abrir mão do pretenso interesse
jornalístico destas informações (muitos jornalistas podem
até achar que elas são divertidas ou curiosas e as publicam
imaginando, como, aliás prevêem os "cientistas"
do Arise , que são facilmente "consumíveis") e
exercer uma postura crítica, cotejando-a com outros dados
e indagando a origem das fontes. Será mais difícil, a posteriori,
justificar esta publicação, sob a alegação de que os usuários
da informação jornalística não gostam de notícias que os
aborrecem. O jornalismo científico deve ter, antes de tudo,
um compromisso com a qualidade da informação e não pode
ficar à mercê do frenesi da sociedade do consumo. Deve,
sim, convidar o leitor à reflexão, e até contrariá-lo se
for o caso, buscando trazer antes conhecimento que informações
fragmentadas, contaminadas por interesses mercadológicos
ou comerciais. Não será fácil, quase sempre, estabelecer
a distinção entre informação e marketing (nada contra o
marketing, pelo contrário, mas cada coisa deve ser colocada
no seu devido lugar) , mas o jornalista científico não pode
abdicar desta tentativa.
Numa sociedade, em que
a educação formal tem se descuidado do ensino de ciências,
relegando-o a um segundo plano, os meios de comunicação
desempenham um papel fundamental no processo de alfabetização
científica. As inovações tecnológicas, as novas descobertas
da ciência básica precisam ser trabalhadas pela mídia para
que os cidadãos possam compartilhar delas.
Sabemos que, mesmo as
categorias profissionais mais bem formadas, atualizam-se
constantemente pelos meios de comunicação, mesmo para informações
e conhecimentos que se situam em sua área específica. Estudo
realizado pelo Centro Brasileiro de Informações sobre Medicamentos,
do Conselho Federal do Comércio e pelo Projeto de Colaboração
do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) com
a Universidade de Brasília mostrou que 84% dos anúncios
relativos a medicamentos não trazem as mínimas informações
necessárias para um prescrição adequada pelos médicos. Revelou,
por exemplo, que "a maioria das propagandas não citava
informações que podem restringir a indicação do remédio,
como contra-indicações (73%), reações adversas (70%), precauções
(74%) e advertências (84%). Além disso, apenas 58% dos anúncios
informavam para quais problemas o produto é indicado e mais
da metade desses fornecia indicações diferentes das aprovadas
pelo Ministério da Saúde. Nove sugeriam o uso de medicamento
para finalidades que não foram aprovadas pelo órgão."
A preocupação reside no fato de que "com a falta de
tempo para o profissional se atualizar, os anúncios estão
se tornando uma das principais referências utilizadas pelos
médicos, o que pode repercutir na escolha do melhor remédio
para determinado problema". (25)
O problema da precariedade
da informação não se restringe ao universo da propaganda,
mas também ocorre no noticiário sobre Medicina/Saúde, incluído
na pauta do Jornalismo Científico, contribuindo para que
a audiência (leitores, telespectadores e radiouvintes, dentre
os quais se incluem também os profissionais de saúde) seja
induzida ao consumo inadequado (à prescrição, no caso dos
médicos) e mesmo à auto-medicação. As capas das nossas revistas
de grande circulação sobre o poder das vitaminas, sobre
os medicamentos milagrosos, como Viagra ou Prozac, ou sobre
as novas terapias alternativas (discorreremos sobre o charlatanismo
que governa esta área mais à frente) reforçam a tese de
que o jornalismo científico ainda se ressente de critérios
mais rígidos para avaliar as informações, deixando de depurá-las
mais adequadamente. Com isso, a socieadade, mais do que
o Jornalismo Científico, tem sido constantemente penalizada.
O mito da liberdade
e o "Big Brother"
A consolidação da Internet
como nova mídia suscitou, de imediato, a esperança de que,
finalmente, poderíamos dispor de um instrumento democrático
para armazenamento e disseminação de informações. Na verdade,
essa possibilidade é, em tese, real, na medida em que, pela
sua agilidade e baixo custo, a Internet deu acesso a pessoas
e entidades que encontravam dificuldade para fazer circular
suas idéias (reivindicações, opiniões, informações etc)
por um espaço mais amplo, na prática todo o planeta. Este
é o caso, por exemplo, das ONGs ambientalistas que, valendo-se
da capilaridade propiciada pela Internet, estabeleceram
um sistema gigantesco de informações, comunicando-se entre
si, com os defensores do meio ambiente e com a própria sociedade.
Hoje, mercê desta rede formidável, exercem influência sobre
governos e empresas, contribuindo para moldar uma consciência
ambiental de amplitude planetária. O mesmo se aplica aos
dissidentes chineses, a grupos revolucionários e às minorias
espalhadas pelo mundo que, a partir da rede mundial, passaram
a ter canais de comunicação com a sociedade, rompendo, ainda
que parcialmente, o seu isolamento.
A democratização da
informação, no entanto, tem sofrido reveses a cada momento
porque, conscientes da potencialidade da "grande teia",
governos, agências de segurança/espionagem ou empresas,
por motivos políticos ou comerciais, passaram a desenvolver
mecanismos (softwares e sistemas sofisticados de monitoramento)
para controlar e censurar mensagens que circulam pela Web.
Embora tais mecanismos possam ser até justificados para
o combate à pedofilia, aos neonazistas, a narcotraficantes
e a outros grupos etica e socialmente condenáveis, têm sido
utilizados também para sufocar ações libertadoras, impedir
acesso a novos ambientes culturais, sociais e políticos
e, ainda, para invadir a privacidade dos cidadãos. Mais
dramática ainda é a possibilidade, concreta e já em uso,
de monitorar, em nome de uma pretensa segurança internacional,
todo o sistema de comunicação eletrônica, numa versão virtual
da antiga caça às bruxas.
Relatório da Freedon
House, grupo conceituado de defesa dos direitos humanos,
sediado em Nova Iorque, denunciava, este ano (2.000), em
um de seus relatórios, que consolidava um amplo estudo realizado
pela entidade, "um eficiente trabalho de censura e
restrição à liberdade de expressão on line" realizado
por inúmeros governos, especificamente Cuba, Coréia do Norte,
Arábia Saudita, China, Irã e Rússia, entre outros. "Estamos
vendo censura em muitos países agora, disse Leonard R. Sussman,
autor do estudo, que inclui o ensaio Censura pontogov: a
Internet e a Liberdade de Imprensa 2.000. Na sua opinião,
os países tendem a controlar o conteúdo da Internet pelos
mesmos motivos que os levam a vetar a livre expressão de
idéias na mídia: certas informações são desagradáveis
para quem está no poder." (26)
A esperança, portanto,
de uma liberdade irrestrita é ilusória e, ao que parece,
a médio prazo, irrealizável. Alguns países que defendem
o livre comércio pela rede, postando-se contra qualquer
tipo de regulamentação, são exatamente aqueles que se destacam
no desenvolvimento de sistemas de espionagem eletrônica,
implantados na calada da noite.
Os exemplos pululam
nos meios de comunicação e merecem, pela sua importância,
ser aqui destacados.
A situação mais dramática,
pelo seu alcance e pela sua intenção espúria, é o sistema
Echelon, capitaneado pelos Estados Unidos, com a parceria
de outros países de língua inglesa, cujo objetivo maior
é viabilizar na prática a figura do "Big Brother",
um olhar refinado, fulminante para as mensagens (e, por
extensão, aos seus autores) que, potencialmente, possam
atentar contra a sua soberania.
Soa interessante o fato
de que a divulgação de sua existência, com detalhes de sua
configuração, se originou nos Estados Unidos, onde mereceu
o repúdio dos adeptos da democracia eletrônica, incluindo
membros de entidades civis e do parlamento. Posteriormente,
foi contemplado com uma reação violenta dos países europeus,
traídos por esta iniciativa, capaz de conceder vantagens
competitivas ao governo e às empresas americanas.
Mas o que vem a ser
o Echelon e por que ele é tão emblemático neste debate sobre
a liberdade na comunicação eletrônica?
O Echelon é um poderoso
sistema, administrado pela Agência de Segurança Nacional
(NSA), que combina satélites de espionagem e estações de
escuta de grande sensibilidade, capaz de rastrear a maioria
das comunicações eletrônicas, incluindo correio eletrônico,
fax e mesmo sinais de rádio. Potencialmente (os seus detratores
garantem que ele faz isso na prática), ele pode escutar
desde telecomunicações de longa distância até chamadas de
telefones celulares, disponíveis localmente. "De fato,
se um telefonema ou uma viagem viaja por satélite ou por
microondas em algum ponto da sua jornada, provavelmente
é interceptado pelo Echelon. Assim, a maior parte do tráfego
mundial de telecomunicações é grampeada, pois mesmo cabos
submarinos de telefonia e sistemas terrestres de fibra óptica
muitas vezes têm ligações de microondas em algum ponto do
circuito.. A principal tarefa do Echelon é esquadrinhar
o tráfego de telecomunicações civis em busca de pistas sobre
esquemas terroristas, cartéis de contrabando de drogas,
agitação política e outras informações solicitadas pelo
Pentágono, por estrategistas do governo e órgãos de fiscalização
do cumprimento da lei. Supercomputadores peneiram os assim
chamados interceptados em busca de palavras-chave associadas
a estas questões. Se os computadores não localizam nada
de suspeito, as fitas são apagadas depois de cerca de um
mês". ( 27)
Sabe-se que o Echelon
está em operação há mais de 50 anos, evidentemente merecendo
aperfeiçoamentos e incluindo novas áreas de interceptação,
como a Internet, e resultou de um pacto secreto entre os
EUA, a Grã-Bretanha, a Nova Zelândia, o Canadá e a Austrália,
nações que, na prática, administram os seus pontos de escuta.
A revelação de sua existência
se deu, em 1.998, em função de um estudo realizado pela
Omega Foundation, uma empresa britânica de pesquisa de mercado,
para o Parlamento Europeu, gerando, de imediato, uma reação
violenta de cientistas em todo o mundo ("Os cidadãos
americanos deveriam saber que toda vez que fazem uma ligação
internacional, a NSA está ouvindo. ..Acostume-se com o fato:
o Grande Irmão está ouvindo", diz John E. Pike, analista
militar da Federação dos Cientistas Americanos, em Washington")
(28)
A revolta tomou corpo
este ano (2.000), quando aumentaram as suspeitas de que
o Echelon estava sendo utilizado para serviços de espionagem
industrial, favorecendo empresas americanas. O jornalista
britânico Duncan Campbell, responsável pela primeira reportagem
sobre o sistema, em agosto de 1.988, na revista New Statesman,
garante que o Echelon foi utilizado para que a Boeing vencesse
a concorrência com o consórcio europeu Airbus para a venda
de aviões à Arábia Saudita, em 1.994, e cita ainda o seu
uso para a "Raytheon vencesse à francesa Thomson na
assinatura do contrato Sivam, que monitora o espaço aéreo
da Amazônia". A discussão ficou ainda mais acalorada,
quando James Woolsey, ex-diretor da CIA, declarou que a
espionagem era uma forma de neutralizar o suborno praticado
por empresas européias. "Calculamos, de forma conservadora,
que vários bilhões de dólares por ano são economizados por
empresas americanas por conduzirmos esse tipo de coleta
de informações secretas e nossa intenção é continuar com
essas atividades". (29)
Os eurodeputados, acompanhados
de ministros europeus (como a ministra da Justiça da França,
Elisabeth Guigou, e o primeiro-ministro italiano, Massimo
DAlema), levantaram a voz contra esta possibilidade,
negada pelo governo americano, exigindo providências urgentes
da União Européia. A indignação foi ainda maior pela inclusão
de um dos parceiros da UE a Grã-Bretanha, suspeita
de fazer, nesse caso, jogo duplo, dividindo sua lealdade
entre os Estados Unidos e a Europa. (30)
Em âmbito mais restrito,
o controle da comunicação on line vem crescendo em escala
avassaladora. Novas regras vigentes na Grã-Bretanha, recém
aprovadas pelo Governo, dão às empresas britânicas liberdade
para monitorar os e-mails e telefonemas dos seus empregados,
o que tem gerado protestos das organizações sindicais. (31)
A FSB, agência de inteligência russa, sem o consentimento
do usuário, passou a adotar, em outubro deste ano (2.000)
um sistema de controle de todo o fluxo de informação na
internet, nos telefones celulares ou pagers, obrigando os
"provedores a equipar suas redes com monitores da FSB,
conectados à sede, por cabos de fibra ótica de alta velocidade.
A ligação permitirá que a agência monitore todas as transações
eletrônicas de e-mails particulares a operações de
e-commerce em tempo real e sem que sua interferência
seja percebida." (32) A China acaba, também, de impor
restrições severas à participação estrangeira nas chamadas
empresas pontocom , bem como uma censura imposta às informações
que circulam pela rede mundial. "Entre as responsabilidades
das empresas pontocom estão não permitir em seus sites material
que subverta o poder estatal, prejudique a reputação
da China ou as chances de unificação com Taiwan e dê
apoio a cultos, como o proibido Fa Lun Gong. Além disso,
os provedores de serviços e conteúdo para Internet devem
manter registros de todo o material que aparecer em seus
sites e de todos os usuários que acessarem seus servidores
por 60 dias. Se houver uma solicitação, eles terão que entregar
os registros à polícia. Os donos do website também devem
censurar e informar as autoridades sobre qualquer conteúdo
ilegal que for publicado."(33) O serviço de segurança
da Holanda, conhecido pela sigla BVD, também admitiu que
tem recolhido e-mails enviados pelas empresas ao exterior
e já está em curso a elaboração de leis que permitirão ao
Ministério da Justiça bisbilhotar e-mails, chamadas de telefones
móveis etc. (34)
Nos Estados Unidos,
o novo vilão virtual é o programa Carnivore, acusado pela
mídia americana de controlar a comunicação eletrônica dos
cidadãos, embora o FBI garanta que este controle só ocorre
quando há autorização judicial. A ameaça pesa, no entanto,
sobre a comunicação pessoal, porque, potencialmente, por
qualquer interesse ou intenção (combater a pornografia infantil,
impedir a propagação de vírus na Internet, promover a espionagem
industrial ou com fins militares ou ainda caçar hackers),
o FBI poderá se julgar no direito de rastrear as mensagens.
O oposição republicana, notadamente às vésperas de uma concorrida
eleição presidencial, não ficou sensível aos argumentos
do FBI e ajudou a engrossar a corrente de reclamações contra
mais este instrumento de invasão de privacidade. (35)
O conteúdo dos sites,
para países autoritários, também incomoda os governantes.
A Arábia Saudia bloqueou, no início do segundo semestre
de 2.000, o acesso a um site hospedado no Yahoo! porque,
segundo as autoridades daquele país, "a maior parte
do conteúdo vai contra os valores religiosos, sociais e
políticos do reino". De alguma forma, há alguma lógica
nesta ação truculenta: "na Arábia Saudita, não existem
cinemas ou teatros, os restaurantes são segregados por sexo
e homens e mulheres não podem ser vistos juntos. O acesso
à Internet, por meio de um único provedor, foi liberado
pelas autoridades árabes em janeiro de 1.999." (36)
Em agosto de 2.000,
a Justiça americana conseguiu descobrir que 11 empresas
farmacêuticas estavam violando a privacidade dos cidadãos,
valendo-se de "cookies" (em resumo, um arquivo
de texto que embute um número de série único que é atribuido
a um determinado computador) para rastrear a navegação dos
usuários da Internet que passavam por suas páginas, a partir
da tecnologia fornecida por uma empresa chamada Pharmatrak,
com competência no desenvolvimento de sistemas que monitoram
a publicidade na rede mundial. Com os "cookies",
as empresas podiam saber quais os endereços visitados pelos
internautas e descobrir, inclusive, suas informações pessoais.
A Pharmatrak esclarece que, de posse destas informações,
as empresas farmacêuticas podem estabelecer comparações
e aperfeiçoar seus sites, negando que coletem nomes, mas
tem sido difícil convencer os advogados americanos de que
não se utilizará, num futuro próximo, destas informações
para favorecer os seus clientes. (37)
Os atentados à democratização
da comunicação jornalística, eletrônica ou não, não param
por aí. A globalização penetrou fundo na indústria cultural,
implementando um processo de fusões e aquisições, que abrange
o mundo das notícias, do entretenimento/lazer e da publicidade.
Em todos os casos, caminhamos em direção à concentração
(às vezes quase monopólio) dos meios de comunicação, com
algumas poucas empresas dominando sistemas de telecomunicações,
de provedores de Internet e de produtores de conteúdo.
A compra da Time Warner
pela AOL, recém aprovada na Europa, tem sido alardeada pelos
meios de comunicação não como apenas um grande negócio (as
cifras giram em torno de US$127 bilhões), mas por representar,
emblematicamente, o futuro no universo das mídias, com poucas
mãos manipulando a informação e o lazer em escala planetária.
O poder acumulado nesta fusão, crêem os especialistas, levarão
a uma onda sucessiva de outras fusões, certamente de menor
porte, porque os concorrentes tenderão a buscar também fôlego
para enfrentar o gigante que acaba de se formar. A AOL-Time
Warner é apenas uma das muitas, embora com certeza a maior,
das parcerias que se instauram no universo das comunicações,
seguindo-se às da MCI-Sprint, da Ameritech-SBC, da AT&
T- MediaOne, da Vodafone-Air Touch e da AT&T-TeleCommunications.
Ao final, prevêem os analistas, o poder da mídia (de todas
as mídias) estará concentrado em poucas mãos, permitindo
ressurgir novamente a ameaça futura do "Big Brother".
(38) Nos Estados Unidos, especialistas advertem para a tendência
ao monopólio de redes e não têm dúvida de que a sociedade
só tem a perder com isso. Norman Horowitz, consultor de
mídia americano, em matéria publicada no Los Angeles Times,
tem inúmeras perguntas para desafiar o processo vertiginoso
e concentrador das mídias: "Será uma boa idéia permitir
que Rupert Murdoch controle a Fox Network, 15 canais de
TV, Fox News, Fox Sports, Fox Family Channel, 20th
Century Fox, Fox Animation, Fox Searchlight, The New York
Post, The Times de Londres, HarperCollins, Weekly Standard,
Mushroom e muitos outros veículos de mídia? Será uma boa
idéia permitir que o presidente da Time Warner, Gerald Levin,
controle a WB Network, HBO, TNT, TBS, CNN, CNNfn, Cinemax,
Warner Bros, New Line Cinema, Hanna-Barbera, Castle Rock,
Time, People, Sports Illustrated, Fortune, outras 28 revistas,
Warner Books, Little Borwn, Warner Bros Records, Atlantlic,
Elektra, Sire, Rhino,Time Warner Cable e muito mais?"
e conclui, profético... A verdade é que, quanto maior o
poder dessas organizações, tanto maior é a sua predisposição
ao abuso". (39)
No Brasil, a situação
acompanha o ritmo mundial. Na Internet, por exemplo, estima-se
que no máximo 8 portais respondam por 90% do tráfego na
rede mundial, com destaque para o UOL, do grupo Folha e
parceria com o Grupo Abril; o Terra, da Telefônica, o IG,
do grupo Opportunity/GP, e mais recentemente o crescimento
do Globo.com, das Organizações Globo, esta última já com
a supremacia nos sistemas de TV aberta e por assinatura.
(40) Recente levantamento realizado pela KPMG, conceituada
empresa de consultoria e auditoria, mostra que, no 3º trimestre
do ano 2.000, "os mercados de publicidade e editoras,
ao lado das empresas de tecnologia da informação, forma
os que mais registraram processos de fusões e aquisições
no Brasil, numa porcentagem 4 vezes maior do que no mesmo
período do ano passado. O mercado da propaganda, praticamente
dominado pelas multinacionais a DPZ está entre as
únicas agências totalmente nacionais a constar entre as
maiores do segmento começa a buscar crescimento em
outras áreas,como internet, marketing direto e promoções,
que resultam na maior parte dos casos recentes de fusões
e aquisições. " (41)
A redução do poder do
Estado evidencia que a regulamentação estatal já tem pouca
força para impedir os monopólios na área de comunicação,
como em outras áreas, e que, na verdade, estamos à mercê
do mercado que, cada vez mais, se traduz por capital financeiro.
Para o jornalista científico,
que tem como matéria-prima, numa sociedade tecnológica,
a inovação, a descoberta revolucionária no campo da ciência
e da tecnologia, o cenário fica, daqui prá frente, no mínimo,
nebuloso. As parcerias entre as redes de notícias e grupos
financeiros e industriais (de telecomunicações, de tecnologia
da informação, do lazer/entretenimento etc), agora e mais
ainda no futuro, ameaçam, dramaticamente mais do que em
qualquer outra época, a independência editorial dos veículos,
se é que alguma vez se possa ter pensado seriamente nesta
possibilidade.
O jornalista Eugênio
Bucci, secretário editorial da Editora Abril, um dos mais
conglomerados de mídia do Brasil, reflete, apropriadamente,
a este respeito: "O jornalismo vai gradativamente se
convertendo em um departamento, entre outros tantos, dentro
dos gigantes transnacionais da mídia. Estes, além de notícias,
vendem ao público uma infinidade de bens culturais que vão
dos vídeos com fitas de ficção aos CDs de música pop, de
games a filmes de Hollywood. De tal sorte que já não é possível
retomar a velha equação que igualava a independência da
empresa jornalística à independência editorial. Cada vez
mais os veículos informativos convivem nos mesmos grupos
com outros negócios, muitos outros negócios. A pergunta
de fundo... não é, portanto, se os conglomerados são bons
ou ruins para a imprensa. A pergunta é outra: como é que
fica a independência jornalística num mundo em que o jornalismo
já não constitui um negócio independente de outros? "
(42) Eugênio Bucci acredita que a ética jornalística, que
prevê a independência, seja a saída para o bom jornalismo,
mas é justo imaginar, filosofica e ideologicamente, que
a ética, na racionalidade empresarial, se conforma aos negócios
e que haja, daqui prá frente, cada vez mais conflitos entre
a ética do jornalista e a ética dos donos dos grandes conglomerados.
Esta é, com certeza,
a perspectiva de Dênis de Moraes, professor do programa
de Pós-Graduação em Comunicação em Informação, Imagem e
Informação da Universidade Federal Fluminense, em artigo
publicado na Sala de Prensa, importante portal da Web para
profissionais de comunicação na Iberoamérica. Segundo ele,
"os mastodontes da difusão movem-se pela Terra a partir
de um modelo de gestão que se vai firmando como paradigma
universal, e cuja voracidade por ganhos de capital não conhece
qualquer limite. Com alianças e fusões, a concorrência praticamente
restringe-se ao clube de players, dotados de fortes reservas
de capital, de know-how tecnológico e de capacidade de articular
consórcios transoceânicos. Essas inversões afastam ainda
mais empresas de menor porte das arenas competitivas e sedimentam
uma industrialização em torno de complexos empresariais.
A palavra de ordem é otimizar as perfomances do sistema
produtivo, sobretudo a partir da convergência de tecnologias
e de reengenharias operacionais, para maximizar vantagens
e lucros... Concluímos que a mundialização das informações
e do entretenimento desenrola-se sob o signo da oligopolização
e da concentração multinacionalizada de suportes, mercadorias
e serviços apesar de os arautos da globalização insistirem
nos benefícios das novas e abundantes safras de produtos
culturais. À medida que essa configuração se cristaliza,
reduz-se o campo de manobra para um desenvolvimento equilibrado
e estável dos sistemas, meios e redes de comunicação, e
agravam-se descompassos estruturais, no contexto da desnacionalização
de áreas estratégicas." (43)
No Brasil, fenômeno
que certamente se reproduz em outras nações latino-americanas,
a propriedade dos meios de comunicação de massa ainda se
ressente da interferência do poder político local e regional,
bem como, mais recentemente, do poder religioso. Centenas
de rádios AM e FM e retransmissoras de TV em todo o País
concentram-se em mãos seja de deputados e senadores da República,
seja de organizações religiosas, particularmente evangélicas
e católicas.
Como os embates entre
ciência e religião ainda permanecem, sendo exacerbados quando
se retomam temas que ferem dogmas ou normas religiosas (
aborto, uso de preservativos para a prevenção da AIDS e
até mesmo explicações sobre a origem do universo ou a teoria
da evolução), surge um terreno novo para conflitos no jornalismo
científico. Que liberdade teria o jornalista científico
para ressaltar uma nova descoberta associada ao Big Bang
ou novas confirmações da relação estreita entre o homem
e organismos menos "nobres", inspiradas nas idéias
darwinistas, se vinculado a uma rede de propriedade religiosa
que professa o creacionismo e rejeita a ciência como explicação?
O comprometimento com
o espírito crítico, que postulamos para o jornalismo científico,
se verá às voltas, cada vez mais, com estas questões, porque
a globalização tem o poder de repercutir, ampla e rapidamente,
as divergências e de nos tornar vizinhos dos centros de
pressão, sejam eles políticos, comerciais ou religiosos.
Talvez decorra, em nosso
país, um tempo ainda razoável para que se possa sentir na
pele todos os desdobramentos oriundos da censura , do controle
e da influência da comunicação eletrônica. Afinal de contas,
" dos mais de 5.000 municípios brasileiros, menos de
300 (6%) contam com a infra-estrutura necessária para a
instalação de serviços de acesso à Internet. Os cerca de
5 milhões de usuários da Internet no Brasil são menos de
3% da nossa população" (44)
A questão não é propor
que fiquemos à margem da parafernália eletrönica, porque
seria ingênuo imaginar que existirá, num futuro próximo,
opção para os que dela se isolarem, mas criar condições
para uma autêntica democratização da mídia, um vigoroso
processo político-social de inclusão das massas neste ambiente.
O jornalista científico,
que tanto tem se engajado para saudar (sacralizar talvez
seja o termo mais adequado) as novas tecnologias e que a
elas aderiu com tanta naturalidade, precisa levantar a cabeça
do teclado, aliviar a mão do mouse e compreender o processo
como um todo. Identificar interesses e compromissos onde
só vislumbra progresso técnico, desnudar parcerias que atentam
para a independência das mídias e, sobretudo, contextualizar
as suas pautas e as matérias delas decorrentes. Deve, especialmente,
entender que os conglomerados já têm os seus porta-vozes
e que a ele compete exercer o espírito crítico, não se sujeitando
apenas às leis do consumo que parecem definir a linha editorial
dos nossos veículos. Divulgar as novas tecnologias, mas
sempre buscar entendê-las sob a perspectiva da cultura,
da economia e da sociedade em que elas se inserem. A ciência
e a tecnologia (e a informação), enquanto mercadorias valiosas,
interferem na vida das pessoas, afetando-lhes o emprego,
criando embaraços à compreensão de um mundo cada vez mais
complexo e promovendo uma nova divisão social e geopolítica.
O jornalismo científico
não pode debruçar-se sobre as inovações e virtudes geradas
por Bill Gates e outros bilionários da indústria da comunicação,
ao mesmo tempo que ignora as preocupações e as demandas
informativas da legião silenciosa dos "infoexcluídos",
que está sendo empurrada para a sarjeta da história. Ele
tem um compromisso com a alfabetização científica dos não
iniciados e, portanto, precisa compartilhar sua missão pedagógica
com sua disposição política, buscando inspiração também
nas coisas mais simples. O jornalismo científico, nas sociedades
emergentes, precisa assumir de vez o seu papel como agente
de emancipação e de resistência, de crítica à desterritorialização
e ao fetichismo tecnológico.
A informação desqualificada
A aceleração da mídia,
potencializada pelas novas tecnologias, tem acarretado novos
desafios para a divulgação científica, na medida em que
relega a qualidade e a precisão da informação jornalística
a um segundo plano. Na maratona diária da comunicação on
line, o tempo, mais do que em qualquer outra época, é o
grande tirano.
Assim, a comunicação
científica se torna extremamente vulnerável a deslizes provocados
pela captação frenética da informação e sua vertiginosa
distribuição pela rede mundial. O que importa é antes dizer
primeiro do que dizer melhor.
Numa sociedade em que
as decisões são tomadas rapidamente, gerando repercussões
imediatas em nível planetário, a desqualificação da informação
é um problema crítico na comunicação contemporânea.
Muitas vezes, esta falta
de qualidade pode derivar da incompetência na apuração dos
fatos, mas ela pode também ser (esses casos têm se multiplicado
com frequência), maximizada pela má fé ou intenção dolosa
dos proprietários da mídia ou dos patrocinadores que os
subsidiam. A manipulação da opinião pública é feita voluntariamente
com o objetivo de despertar desejos e influenciar consciências,
favorecendo pessoas, empresas, governos, sistemas políticos
e ideologias.
Com certeza, a informação
econômica é a que mais tem se prestado a este tipo de manipulação,
pela sua estreita dependência a interesses de governos e
empresas, interessados em obter lucros e vantagens num curto
período de tempo.
Um trabalho recém lançado
nos EUA The Fortune Tellers escrito por Howard
Kurtz, jornalista do Washington Post , põe a nu o processo
de manipulação das Bolsas pela mídia, citando situações
em que uma simples notícia, muitas vezes inverídica, revolucionou
o mercado de ações. "São 310 páginas recheadas de casos
como o da Xybernaut, empresa de tecnologia que tinha ações
cotadas a US$30. Um repórter iniciante publicou, com base
pífia, uma matéria na Internet prevendo problemas financeiros
para a empresa. As ações desmoronaram para US$1,31. Elas
se recuperaram um mês depois, não por conta de relatórios
sólidos de analistas, mas porque alguns de seus produtos
(roupas com computadores embutidos) foram apresentados num
programa de tevê." (45)
Na verdade, a sensibilidade
do mercado anda tão à flor da pele que um único indivíduo,
mal intencionado, pode provocar prejuízos importantes a
empresas e a investidores de Bolsas. É emblemático o caso
recente de Mark Jacob, um norte-americano de 23 anos que
resolveu lucrar na Bolsa espalhando boatos pela Internet.
Ao veicular na rede mundial que o presidente de uma fornecedora
de canais de fibra óptica a Emulex poderia
ser demitido e que os resultados do quarto trimestre do
ano trariam perdas e não lucros, como previsto, fez com
que a ação da companhia despencasse de US$113 para apenas
US$43, penalizando em milhões de dólares um número significativo
de investidores.
A imagem de empresas
ou a reputação de governantes podem, portanto, ser ameaçadas
por um simples e-mail, bem como pode se mobilizar consciências
em prol de causas virtuais absurdamente falaciosas. Recentemente,
a mais importante sociedade científica brasileira
a SBPC Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência
viu-se envolvida num desses episódios. O seu jornal
eletrônico, de grande credibilidade e prestígio, reproduziu
notícia que dava conta de que em escolas americanas estavam
sendo utilizados mapas que indicavam a região amazônica
e o pantanal brasileiros como "área de controle internacional".
A informação havia sido gerada por uma corrente apócrifa
de e-mail, que buscava emprestar veracidade ao fato citando
um site ultranacionalista, que apresentava um mapa com aquelas
características. Em resumo, a informação era falsa, foi
desmentida categoricamente por embaixadores do Brasil e
dos EUA, mas provocou uma imensa rede de intrigas, respaldada,
certamente, pelo endosso de fontes de ciência e tecnologia.
As redações dos jornais brasileiros, por conta desta fraude,
receberam centenas de e-mails de leitores/internautas ao
mesmo tempo preocupados e indignados com a possível "invasão
americana". (46)
É possível imaginar
os prejuízos que este tipo de informação pode gerar em momentos
em que uma polêmica está acesa, ou os ânimos estão acirrados,
como, por exemplo, em situações de conflito, como as vigoram
permanentemente entre árabes e judeus, no Oriente Médio.
As novas tecnologias
levam ao extremo esta possibilidade de manipulação. Programas
de computador, bastante sofisticados, já permitem estabelecer
uma sincronia perfeita entre os movimentos labiais e a fala,
artificialmente criada, de uma pessoa, de tal modo que se
torna praticamente impossível perceber que se trata de uma
fraude. Este é o caso do programa chamado de Empregado Digital
(Digital Personnel), criado por pesquisadores da NASA, Agência
Espacial Americana, por encomenda do governo dos Estados
Unidos e cuja patente está em mãos da Graphco Technologies,
uma companhia americana. Embora a Graphco garanta que deverá
valer-se deste recurso para "replicar imagens de pessoas
famosas e usá-las para promover o comércio eletrônico pela
Internet", é fácil imaginar o uso político desta nova
tecnologia. Com ela, "as toscas fotos retocadas usadas
por Stalin para apagar da lembrança personagens históricos
da Revolução Russa parecem brincadeira infantil". (47)
Outras tendências presentes
na indústria da comunicação representam, ainda, desafios
para a informação jornalística e, em particular, o jornalismo
científico. É imperioso destacar pelo menos 4 delas: a segmentação/especialização
, a parceria informação/marketing, a relação cada vez mais
tensa entre ciência e outros saberes e a biologização do
social.
A primeira delas diz
respeito ao aprofundamento do chamado mosaico informativo
pela crescente segmentação da mídia. A cadernização dos
veículos impressos, o surgimento de títulos de revistas
focadas em especialidades e a multiplicação de neswsletters
endereçadas para públicos cada vez mais específicos atendem,
com certeza, a novas demandas informativas e a estratégias
da indústria cultural. Talvez se possa, num olhar mais ligeiro,
imaginar que se trata de um processo irreversível, contra
o qual não existem argumentos satisfatórios. O fato, no
entanto, merece uma reflexão, sob o ponto de vista da comunicação
científica e seu papel na democratização do conhecimento.
A desmassificação dos
produtos, já empreendida na produção industrial, em larga
escala, não deve ser transplantada, sem maior análise, para
o terreno da comunicação porque corre-se o risco de elitizar
veículos e conteúdos, gerando uma nova onda de excluídos.
É fácil explicar. Na
medida em que os veículos, internamente, a partir de cadernos
e editorias, especializam seus conteúdos, buscando favorecer
os leitores assíduos, ainda que facilitem, para este público,
a busca por assuntos e a sua leitura, segregam a informação,
retirando-a do espaço habitualmente percorrido pelos leitores
não iniciados. Uma parcela considerável de leitores de jornais
e revistas, de radiouvintes e telespectadores não se aventura
a consultar esses espaços especializados, exatamente porque
não vê, de imediato, qualquer identificação com eles. "Eles
são para pessoas que conhecem o assunto", pensam estes
leitores. Desta forma, deixam de receber informações valiosas
para a compreensão do mundo que os cerca. Isso ocorre também
porque o próprio veículo costuma canalizar para estes cadernos,
programas e editorias as notícias/reportagens/artigos que
circunscrevem este conteúdo (o que tem a ver com informática/computação
vai para o caderno/programa de informática; o que se relaciona
com agropecuária vai para o caderno/programa de agribusiness;
o que se inclui no universo da ciência e da tecnologia deve
estar no caderno/programa de ciência e tecnologia). Sobram
para os não iniciados apenas algumas matérias revestidas
de grande impacto junto à opinião pública: a clonagem da
ovelha Dolly, a ameaça à Terra por um asteróide, um computador
que obedece à voz humana, o perigo dos alimentos transgênicos
etc, muitas vezes descontextualizadas, quase sempre isoladas,
como se o fato científico surgisse como um cometa, de tempos
em tempos, sem qualquer vinculação com um processo sistemático
de invenção/descoberta/produção.
A segmentação excessiva
contribui para a fragmentação do conhecimento porque, quase
sempre, privilegia o detalhe em detrimento do processo e,
por um viés filosófico/ ideológico, decorrente da ânsia
de consumo da informação, impede que a opinião pública o
compreenda por completo.
A saída, portanto, talvez
esteja em trazer a informação científica para junto do universo
maior das informações, evidenciando a presença da ciência
e da tecnologia na vida das pessoas e das empresas. A cobertura
política, esportiva, econômica, policial etc abre, para
aqueles que o desejam, "ganchos" para a inserção
da informação científica, aqui efetivamente mais facilmente
compreensível e assimilável, porque integrada a um contexto
que extrapola o do discurso especializado. Na prática, a
imprensa tem, muitas vezes, seguido este caminho (incorporando
informações sobre saúde quando autoridades artistas
ou políticos são acometidos de doenças graves; falando
sobre fadiga de materiais quando um viaduto importante sofre
rachaduras e assim por diante).
Não se trata de punir
os que buscam informações especializadas, mas de dar uma
chance aos que precisam ser apresentados às novas descobertas,
para que não se aprofunde a distância entre os que dominam
o conhecimento e o que estão à sua margem.
A segunda tendência
remete à relação cada vez mais incestuosa entre informação
e marketing. A busca pelos conglomerados da comunicação
por parceiros para seus negócios ou mesmo para sustentar
seu ritmo de crescimento abre espaços para influências nem
sempre desejáveis na produção das notícias. Somadas aos
interesses (sua opção política, sua visão de mundo etc)
dos donos dos veículos, estas influências acabam desviando
a cobertura de sua verdadeira função, contribuindo para
um processo cada vez mais ostensivo da manipulação pública,
como se pode depreender pelo noticiário relativo a movimentos
sociais (MST Movimento dos Sem Terra, por exemplo,
no Brasil) e a minorias.
Os veículos vêm gradativamente
cedendo espaço e tempo para a divulgação de pseudo-reportagens
(já cunhadas, eufemisticamente, de info-comerciais), onde
a empresa jornalística propaga seus negócios e os de seus
parceiros, tentando imprimir isenção a noticiários obviamente
comprometidos por interesses comerciais. Renata Lo Prete,
ombudsman da Folha de S. Paulo, chamava, há mais de 2 anos,
atenção para a derrubada do muro entre a redação e a área
comercial, numa relação que, em muitos casos, tendia para
a promiscuidade. "Coube ao Los Angeles Times tomar,
há dois anos (1.996), a primeira decisão a transcender meras
reuniões de metas entre jornalistas e marketeiros. Com o
objetivo de estancar a fuga de assinantes, o jornal resolveu
que seus investimentos editoriais passariam a ser concebidos
e monitorados por comissões de especialistas em publicidade,
marketing, circulação e ... jornalistas. Alguns diários
imitaram o californiano, caso de Houston Chronicle e Arizona
Republic. Outros foram, além na redistribuição do trabalho.
No Oregonian, por exemplo, a redação abdicou da responsabilidade
sobre os cadernos de veículos e imóveis, hoje totalmente
pautados, redigidos e editados por profissionais do departamento
de publicidade. O Denver Post , do Colorado, tirou dos jornalistas
a cobertura de cassinos, pistas de esqui e seções faça-você-mesmo."
(48)
Marcelo Leite, repórter
da Folha de S. Paulo, que cobre a área de ciência e tecnologia,
mantendo inclusive coluna específica em seu website, de
há muito, denunciava o "abastardamento do jornalismo"
pelo "concubinato de conveniência entre marketing e
jornalismo", configurado no "uso do já racionado
espaço editorial aquele destinado a notícias e reportagens,
não a anúncios para a promoção dessas iniciativas
estranhas (referia-se às promoções para venda de fascículos,
CDs e sorteios) às redações". (49)
Um caso rumoroso, que
ficou conhecido como "Staplesgate", ocorrido no
final de 1.999, e que envolveu um prestigioso jornal
Los Angeles Times, o quarto maior dos EUA, e um complexo
de esportes e entretenimento O Staples Center - construído
no centro de Los Angeles, ilustra esta relação perigosa.
O Los Angeles Times
dedicou toda sua revista dominical à cobertura do Staples
Center, sem caracterizá-lo como propaganda e, o que é pior,
sem dar conhecimento à redação de que era sócio-fundador
do centro esportivo e que havia concordado em dividir os
2 milhões auferidos com a receita publicitária com os proprietários
do "shopping". Ou seja, tentou ludibriar leitores
e jornalistas , tratando anúncio como informação. A descoberta
da farsa gerou uma reação violenta da redação, que, imediatamente,
denunciou uma burla da ética jornalística, exigindo, o que
foi feito, a publicação de um caderno de 14 páginas, no
próprio jornal, em que os jornalistas criticavam a postura
da empresa. (50)
O episódio teve grande
repercussão e, ao que sabe, outros jornais americanos passaram
a reposicionar a relação entre a área editorial e comercial,
revendo suas práticas mercadológicas.
Esta resistência, no
entanto, embora fundamental para preservar a independência
da informação jornalística, é quase um fato isolado nos
dias atuais. Os grandes complexos de comunicação, em virtude
da sua acelerada expansão, que requer injeções contínuas
de capital, e de novas estruturas societárias, vêm, cada
vez com maior frequência, cedendo o seu espaço editorial,
para empresas e grupos empresariais, sejam eles sócios ou
parceiros em projetos especiais. Não é raro observar operações
casadas entre coberturas jornalísticas e mensagens publicitárias,
quase sempre convivendo no mesmo espaço das revistas e programas
de TV. A maioria das empresas jornalísticas de menor porte,
há algum tempo, já loteou seu espaço, pressionada pelos
custos que ameaçam sua própria sobrevivência. Felizmente,
há inúmeras exceções a destacar, como a Revista do Consumidor,
editada pelo IDEC Instituto de Defesa do Consumidor;
os Cadernos do Terceiro Mundo; o Jornal do Meio
Ambiente, para só citar alguns exemplos no caso brasileiro.
O interesse comercial
não poupa a informação qualificada em ciência e tecnologia;
pelo contrário, apropria-se dela para aumentar o apetite
de empresários da comunicação, o que se constitui num desafio
gigante àqueles que estão empenhados na divulgação científica.
Cite-se o exemplo, também
emblemático, da Enciclopédia Encarta da Microsoft , que
resolveu, pela ação dos marketeiros de Bill Gates, interpretar
a história ao sabor dos interesses do público-alvo, levando
ao extremo a idéia de que o cliente é o rei e não pode ser
contrariado. " Afinal, quem realmente detém a paternidade
da aviação Santos Dumont ou os irmãos Wright? ...Consulte
a versão brasileira e lá está o nome de Alberto Santos Dumont.
Procure pelo assunto na versão americana e o crédito do
invento vai para os irmãos Wright, que teriam se antecipado
a Santos Dumont em três anos, num vôo na praia de Kitty
Hawk, na Carolina do Norte. A biografia do aviador brasileiro
na versão americana nada traz sobre o 14 Bis. Em vez disso,
fala de um acidente sofrido por Santos Dumont em 1902 ao
tentar cruzar o Mediterrâneo com um dirigível projetado
por ele. A edição brasileira ignora o acidente de 1902 e
conta em detalhes o vôo histórico de Santos Dumont em 1906.
Qual delas está correta? Depende de onde você mora."
Mas as divergências não param por aí. "Faça uma pergunta
simples. Quem inventou o telefone, por exemplo. Na Encarta
americana, na brasileira ou na alemã está a resposta esperada:
Alexander Graham Bell. Mas os italianos encontrarão um certo
Antonio Meucci, ítalo-americano que teria antecipado o feito
de Bell em cinco anos. Na versão americana não há o registro
da palavra Meucci em nenhum dos 45.000 textos que a compõem.
Na Encarta inglesa, o britânico Joseph Swan inventou a lâmpada.
Na americana, a lâmpada é criação de Swan e de Thomas Alva
Edison ao mesmo tempo." (51)
Talvez Bill Gates tenha
resolvido, democraticamente, criar várias histórias do mundo
das invenções, convicto de que, assim como existem as histórias
dos vencedores e vencidos, a ciência e a tecnologia também
tenham as suas. Há estudiosos, bem humorados, que acreditam
que, com o processo de segmentação do mercado e com a obsessiva
intenção de satisfazer o cliente, já deva estar sendo cogitada
uma enciclopédia, voltada para os grupos radicais, que garante
que foram os nazistas e, não os judeus, torturados nos campos
de concentração, e onde Hitler poderá ser encontrado no
verbete heróis do nosso tempo.
A concentração das agências
de propaganda, fenômeno observado em todo o mundo, já citada
neste artigo, contribui para que a pressão externa aos veículos
jornalísticos seja cada vez mais intensa, aumentando o poder
de fogo dos anunciantes e a vulnerabilidade da independência
editorial. Pode-se, ainda, mencionar, pelo menos no caso
brasileiro, o fato de muitos colunistas, particularmente
os que mantêm espaços para repercutir temas econômicos ou
de finanças, de negócios em geral ou de propaganda/marketing,
serem proprietários de empresas de assessoria/consultoria,
geralmente prestando serviços, eventuais ou permanentes,
para organizações de caráter público ou privado. É razoável
imaginar a dificuldade inerente a esta duplicidade de funções
e a suspeita que se instaura, quando jornalistas precisam
conciliar sua opinião na grande imprensa e os interesses
de seus clientes.
A terceira tendência
diz respeito à convivência cada vez menos pacífica entre
a ciência e outro saberes e conhecimentos, aqui representados
pela religião (ou religiões ou ainda crenças de maneira
geral) e outras explicações que se situam fora do universo
da ciência, muito especialmente as chamadas curas/terapias/medicina
alternativas.
No caso específico da
religião, recrudesce, motivado por grupos radicais (seitas,
segmentos ultraconservadores das igrejas tradicionais),
o antagonismo entre a racionalidade do método científico
e o mundo da fé. Nos Estados Unidos, os criacionistas insistem,
com vitórias importantes em alguns Estados americanos como
Kansas, em fazer com que as escolas abandonem a teoria da
evolução, proposta por Darwin, privilegiando os textos bíblicos,
tomados ao pé da letra. Desta forma, uma geração inteira
de estudantes fica privada de uma explicação científica
fundamental, não pode incluir o Big-Bang como uma opção
racional para o início do universo e tem que se curvar ao
primado da fé.
A situação é grave porque
reacende o fanatismo num momento em que, por ação de religiosos
e cientistas, ciência e fé estavam se aproximando, buscando
uma convivência harmoniosa, respeitados os seus limites
e suas específicas funções sociais. Neste sentido, ainda
que tardia, deve ser louvada a atitude do papa João Paulo
II, em nome da Igreja Católica, reabilitando Galileu e Copérnico
e aceitando, ainda que sem entusiasmo, a teoria da evolução.
(52)
A preocupação com esta
escalada contrária à ciência tem sentido, sobretudo quando
se observa que, em muitos países, e o Brasil é um exemplo
flagrante disso, os meios de comunicação vêm sendo gradativamente,
numa proporção surpreendente, apropriados por grupos religiosos,
muitos deles com princípios e práticas que se mostram resistentes
ao uso da razão. Pode-se antever, com esta concentração
da mídia por religiões, seitas ou crenças, que a divulgação
científica, mantido este confronto entre ciência e religião,
possa encontrar barreiras intransponíveis num futuro próximo.
Os problemas também
são encontrados em outras situações em que a razão e o sagrado
se enfrentam. Uma corrente que ganha força na Europa e nos
Estados Unidos e que propõe devolver aos indígenas todos
os objetos e restos mortais, retirados por pesquisadores
(arqueólogos, antropólogos), de seus locais de origem, para
subsidiar estudos acadêmicos e científicos. A situação é
mais crítica nos Estados Unidos, onde a legislação federal
já prevê esta repatriação, conforme explica Washington Novaes,
conceituado jornalista brasileiro, em interessante artigo,
recém publicado. Novaes relata a história dos índios hopis
e navajos, no Arizona, que reivindicaram, tendo a Justiça
decidido a seu favor, o fechamento de uma mina que faturava
milhões de dólares, vendendo pedra-pomes para que a indústria
de jeans envelhecesse artificialmente as peças que fabricava.
"Segundo os hopis continua Novaes esse
pico é a morada dos espíritos Kachina, que vivem ali parte
do ano, sob a forma de nuvens. Para os navajos, é uma das
fronteiras do seu universo." (53)
A disputa entre o conhecimento
científico e o pseudocientífico, que costuma respaldar as
chamadas terapias/curas alternativas, merece também ser
aqui mencionada, especialmente porque a mídia tem dado espaço
cada vez mais generoso a elas, favorecendo o incremento
do charlatanismo. O universo dos gnomos, dos fluidos mágicos,
dos aromas, dos florais e das pirâmides, aproveitando-se
da boa-fé das pessoas, mas também das angústias e depressões
do cidadão deste novo milênio, não resolvidas pela ciência
tradicional, invade os meios de comunicação, criando condições
para explicações fantasiosas e a emergência de uma nova
era, povoada pelas bruxas e alimentada pela expectativa
de milagres.
O jornalismo cientifico
precisa reagir a esta investida moderna da pseudociência,
sob pena de ver florescer uma atitude contrária à ciência
e a busca de explicações fantásticas que ferem a inteligência
e a razão. Isso não significa que ele possa agir, preconceituosamente,
com relação às novas idéias e teorias; pelo contrário, deve
examiná-las, criticamente, recorrendo a fontes competentes.
Finalmente, a última
tendência tem a ver com a crescente importância da biotecnologia
e suas aplicações, potencializada, enormemente, após a clonagem
pioneira da ovelha Dolly, que suscitou enorme polêmica,
confrontando os que propugnam o avanço científico a qualquer
preço e os que defendem a adoção de limites sociais para
a ciência.
Desperta para o tema,
a imprensa o tem tratado exaustivamente, na maioria dos
casos de maneira irresponsável e sensacionalista, dando
vazão a noticiário sem qualquer sentido, abrigando pesquisas
e teses despropositadas. É o caso da insistência em estabelecer
correlações estreitas entre genética e comportamento humano,
propalando a descoberta do gene da felicidade, da depressão,
da inteligência etc, como se o ser humano fosse apenas uma
programação genética e a cultura e o meio ambiente meros
acessórios da existência humana.
O jornalismo científico
não pode incorporar, sob nenhuma hipótese, esse novo modismo
porque, sem nada acrescentar ao mundo da ciência e do entendimento
humano, ele pode inspirar uma nova onda de pureza genética,
como a que assistimos nos tempos do holocausto. Até há pouco
tempo, como já vimos neste artigo, países de Primeiro Mundo
penalizavam portadores de deficiências (há notícias de que
mulheres européias foram esterilizadas apenas porque usavam
óculos e poderiam transmitir esta deficiência a seus filhos,
comprometendo a pureza da raça); portanto, seria uma postura
irresponsável e eticamente condenável escancararmos, novamente,
em nome de um pretenso interesse jornalístico, as portas
para esta odiosa forma de discriminação. É preciso separar
ciência de ficção, sobretudo quando esta é alimentada seja
pela ignorância, seja por interesses espúrios, moralmente
indefensáveis, como a de seguradoras que exigem testes de
DNA e de empresas que também os aplicam, tentando selecionar
apenas funcionários "saudáveis".
Os desafios do jornalismo
científico no século XXI não são pequenos. Simplesmente
porque a eles se vinculam interesses poderosos, situados
nos campos da ciência e da indústria da comunicação. Cabe
ao jornalista estabelecer parcerias, mobilizar consciências,
consolidar a sua competência informativa, munir-se de coragem
e espírito crítico para enfrentá-los. A verdade, felizmente,
é filha dos justos, não dos tiranos.
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dos EUA. In: O Estado de S. Paulo, 22/09/99, p. A-14.
Veja também artigo de Miller, Greg e Helm, Leslie, Microsoft
quer influenciar justiça nos EUA, publicado originalmente
no Los Angeles Times, reproduzido, com este título, em O
Estado de S. Paulo, 11/04/98, p.B9.
6) Lins da Silva, Carlos Eduardo. OMS acusa Philip Morris
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7) Cientistas teriam sido comprados. In: Jornal do Brasil,
Rio de Janeiro, 05/08/1.998, p. 16. Ver também artigo de
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pelo Jornal do Brasil, sob o título Philip Morris
financiava cientistas, de 12/05/1.997, p.7.
8) Torry, Saundra. Philip Morris é processada por ocultar
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(9 Balthazar, Ricardo. Cigarro financiou cientistas no
Brasil. In: Valor Econômico, 08/08/2.000, p.A12.
10) Balthazar, Ricardo. Abifumo discutiu plano para financiar
cientistas. In: Valor Econômico, São Paulo, 09/09/2.000,
p. A4. Segundo o jornal, os documentos pesquisados estão
em www.rjrtdocs.com e www.bwdocs.aalatg.com. Ver também
matéria assinada por Paraguassu, Lisandra. Philip Morris
faz projeto de sobrevivênciana AL. In: Folha
de S. Paulo, 3/07/2.000, p. C3.
11) Gairclough, Gordon. Fabricantes de cigarro investem
em campanhas antifumo.Pode? In: Jornal do Brasil,
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13) Netto, Araújo. Ouro genético. In: Jornal do Brasil,
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14) Menconi, Darlene. Apartheid biológico. In: Isto
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35) Taquari, Carlos. FBI nega que tenha criado "Big
Brother". In: Gazeta Mercantil, São Paulo, 19/09/2.000,
p.8.
36) Arábia Saudita bloqueia Yahoo!. In: Jornal do Commercio,
Rio de Janeiro, 15/08/2.000, p. B-10
37) Justiça dos EUA investiga uso de cookies.
In: Folha de S. Paulo, 23/08/2.000, p F6; OHarrow,
Robert. Empresas farmacêuticas espionam hábitos de clientes
pela Internet. In: O Estado de S. Paulo, 16/08/2.000,
p. A-12.
38) Grandes irmãos.In: Carta Capital, São Paulo,
16/02/2.000, p. 68-71; Aprovada fusão AOL-Time Warner. In:
Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 12/10/2.000,
p.A-9.
39) Horowitz, Norman. Especialista adverte para monopólio
de redes nos EUA. In: O Estado de S. Paulo, 07/01/2.000,
p. A-9.
40) Billi, Marcelo. Grandes corporações dominam Internet.
In: Folha de S. Paulo, 19/06/2.000, p. B-6.
41) Comin, Arnaldo. Propaganda lidera fusões e aquisições.
In: Valor Econômico, São Paulo, 18/02/2.000, p.B13.
Ver também Hwang, Suein L. Donos do dinheiro ditam o tom
do marketing da Internet. In: O Estado de S. Paulo,
18/02/2.000, p. B13 e Murray, Alan. Na nova economia, o
poder fica mesmo é com os grandes. In: O Estado de S.
Paulo, 18/01/2.000, p. B-11.
42) Bucci, Eugênio. Imprensa independente. In: Exame,
18/10/2.000, p. 198.
43) (Moraes, Dênis de. A comunicação sob domínio dos conglomerados
multimídias. In: Sala de prensa (www.saladeprensa.org/art56.htm).
44) Schwartz, Gilson. Infoexclusão ameaça Internet
no Brasil e na AL. In: Folha de S. Paulo, 15/10/2.000,
p.B-2)
45) Bernardes, Ernesto. Deformação privilegiada. In: Dinheiro,
São Paulo, 18/10/2.000, p.43.
46) Volta a circular e-mail com mentiras sobre a
Amazônia. In: O Estado de S. Paulo, 07/10/2.000,
p. A-21.
47) Barbosa, Bia. O homem falsificado pelo computador.
In: Veja, São Paulo, 28/06/2.000, p,. 68-9.
48) Lo Prete, Renata. A queda de mais um muro. In:
Folha de S. Paulo, 15/03/1.998, p. 1-6.
49) Leite, Marcelo. Marketing, jornalismo e isenção. In:
Folha de S. Paulo, 11/06/95, p. 1-6.
50) Ver a respeito a entrevista de David Shaw, jornalista,
crítico de imprensa do Los Angeles Times, prêmio Pulitzer
em 1991, sobre o "Staplesgate", publicada sob
o título Agressão à ética. In: Carta Capital, São
Paulo, 16/02/2.000, p. 35-7.
51) Mendes, Maria Luiza. História à la Encarta. In: Exame,
São Paulo, 25/08/1.999, p. 14-15.
52) Ver a respeito Nogueira, Pablo. Toda fé na razão.
In: Veja, São Paulo, 16/06/1.999, p.64-65; Bonalume
Neto, Ricardo. Antifundamentalistas. In: Folha de S.
Paulo, 22/08/1.999, p.5-11; Montgomery, Rick. Ciência
e religião em conflito, outra vez. In: Jornal da Tarde,
São Paulo, 25/01/1.997, p.2; Moon, Peter. Fé sem razão.
In: Isto É, São Paulo, 25/08/1.999, p.88-90; Reis,
José. Estudo compara relação de cientistas com religiosidade.
In: Folha de S. Paulo, 10/05/1.998, p.5-15; Goldemberg,
José. Ciência e religião. In: O Estado de S. Paulo,
19/10/1.999, p.A-2; e Gleiser, Marcelo. Ciência, fé o sensacionalismo
criado pela imprensa. In: Folha de S. Paulo, 06/09/1.998,
p. 5-13.
53) Novaes, Washington. Os limites da ciência. In:
O Estado de S. Paulo, 20/10/2.000, p.A-2.
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* Wilson da Costa Bueno é jornalista, professor
do programa de Pós-Graduação em Comunicação
Social da UMESP e de Jornalismo da ECA/USP, diretor da Comtexto
Comunicação e Pesquisa.