Wilson da Costa Bueno*
Uma cultura egocêntrica
como a brasileira costuma cultivar alguns hábitos
(ou vícios) que incomodam. Um deles é a multiplicação
de cases "vencedores" e de premiações
na área de comunicação ou propaganda/
marketing, legitimados por um mercado que insiste em fechar
os olhos para a realidade e bate palmas para qualquer coisa.
No fundo, falta mesmo uma perspectiva crítica por
parte daqueles que patrocinam determinadas hipocrisias ou
então (não há como negar) esses processos
não passam de estratégias para ganhar dinheiro
e prestígio fácil. Publicações
promovem prêmios para arrebanhar anúncios das
empresas premiadas, explorando o ego avantajado de executivos
que adoram troféus e certificados, muitos deles sem
valor algum (todo mundo tem). Provavelmente estas empresas
e chefias já se deram conta de que os empresários
e clientes (e mesmo a sociedade) podem ser iludidos facilmente
e "quadrinhos coloridos" na parede de agências
e empresas têm garantido contas e empregos por esse
Brasil afora. Entidades distribuem prêmios sobretudo
entre os seus diretores e a caravana continua passando sem
que os cachorros ladrem.
Sem ser leviano com as generalizações (sempre
há exceções, felizmente), é
possível admitir que, na maioria dos casos, os vencedores
não deveriam merecer mais do que batatas podres porque
os processos de que resultam as premiações
e os convites para apresentação de cases em
publicações ou eventos da área são,
muitas vezes, absolutamente viciados.
Os exemplos podem ser contados às dezenas, mas podemos
citar apenas alguns deles como ilustração.
A Escola de Comunicações e Artes da USP (que
coisa feia, minha querida ECA!) chegou a premiar a Ambev,
no ano do episódio lamentável do vira-casaca
do Zeca Pagodinha (aquele entra e sai de cervejaria), com
o prêmio de empresa do ano em Comunicação
Corporativa, o que convenhamos se constituiu numa autêntica
afronta à ética e à inteligência.
A Merck continua sendo convidada para falar do case "fantástico"
da retirada do Vioxx do mercado, ao mesmo tempo em que fecha
acordo de bilhões de dólares nos EUA com os
consumidores vitimados pelo medicamento. Uma farsa fantástica
de Relações Públicas porque nunca se
falou tão mal de uma indústria farmacêutica
(quem tiver interesse pode consultar o artigo já
publicado sobre o caso Vioxx em http://www.jornalismocientifico.com.br/rev3artigoWilsonBuenoVioxx.htm),
um triste episódio que chegou a respingar no setor
como um todo e inclusive na poderosa e quase intocável
FDA, organismo responsável pelo controle de medicamentos
nos Estados Unidos. Algumas agências/assessorias de
empresas áreas, ao longo do tempo, têm proclamado
o seu notável trabalho de gerenciamento de imagem
durante as crises e os jurados que as contemplam (e as universidades
que as convidam para relatar estes cases de sucesso para
os futuros profissionais) não se dão sequer
ao trabalho de contatar as famílias das vítimas.
A verdade nem sempre está no relatório dos
cases. Empresas que degradam o meio ambiente buscam, agressivamente,
conquistar prêmios de responsabilidade ambiental,
criam a figura de embaixadores ambientais, fazem qualquer
negócio para "tapar o sol com a peneira".
A indústria farmacêutica insiste que investe
pesado em pesquisa e desenvolvimento mas consome a maioria
dos recursos em propaganda e marketing. Como diz o ditado:
por fora; bela viola; por dentro pão bolorento.
Muitos colegas que se apressam em garantir os seus lugares
em congressos ou seminários - certos de que tomarão
contato com o "creme de la creme" da área
- não se dão ao cuidado de observar, nos folders
de divulgação, as empresas que patrocinam
tais eventos. Se fossem mais críticos e vigilantes,
iriam descobrir que, em muitas situações,
os cases incluídos no programa têm menos a
ver com o seu mérito do que com a relação
comercial com os organizadores das reuniões. Agências
e assessorias se empenham em garantir esse espaço
(em muitos eventos quem não paga não fala
mesmo!) porque, desta forma, aparecem para o mercado (e
sobretudo para seus clientes) como vencedores, referências
ou coisa equivalente. Santa hipocrisia do tipo "me
engana que eu gosto".
Algumas medidas poderiam sanear essa área e aumentar
a sua legitimidade. A primeira delas seria impedir de vez
que, nas premiações concedidas por entidades,
os seus diretores e suas empresas concorressem. Não
é por mera coincidência que, em muitas oportunidades,
são eles que conquistam os prêmios maiores.
A segunda medida seria criar condições para
que os jurados (alguns convidados para esta tarefa têm
estreita relação com os concorrentes) não
ficassem reféns dos relatórios perfumados,
refinados, luxuosos (e mentirosos) e que pudessem investigar
se o relato é realmente fiel ou apenas uma peça
de propaganda (má propaganda, é lógico,
porque manipula os dados). Muitos relatórios de cases
se respaldam em dados falsos e obedecem à lógica
de adaptar o alvo ao tiro. A terceira delas seria desmascarar
as "picaretagens explícitas" relevando
os vínculos entre as premiações e as
apresentações/publicações de
cases e interesses pessoais, políticos, comerciais
etc. As premiações e os cases não deveriam
ser comprados, mas conquistados de verdade pelos méritos
dos vencedores, o que, infelizmente, não é
o que acontece na maioria dos casos.
Este é um assunto delicado para se comentar porque,
ao que parece, muita gente está envolvida nesse processo
que movimenta grana, "tráfico" de influência
e cinismo empresarial, mas é preciso imediatamente
um banho ético no mercado que adere acriticamente
a estas hipocrisias empresariais.
Do jeito que a coisa vai, algumas premiações
e cases ainda irão nos surpreender em breve. Talvez
o McDonald´s e o Burger Kins ganhem o título
de "empresa que estimula o consumo consciente",
a Souza Cruz e a Philip Morris (a cruz e o morris nos nomes
destas empresas serão mera coincidência?) de
"companheiras da saúde", a indústria
de agrotóxicos de "sustentabilidade ambiental"
, a Philips de "a empresa mais admirada no Piauí"
e a Cataguazes de "excelência na construção
de barragens". Sem falar nos prêmios de pontualidade
e de respeito ao consumidor das empresas aéreas,
dos cases de excelência em qualidade das montadoras
(um recall por semana) , de governança corporativa
da Siemens, HP, Volkswagen, Parmalat etc, de relações
governamentais da Mendes Júnior e de "amigos
dos indígenas" relatados pela Vale e pela Aracruz
. Algumas cooperativas e empresas do setor leiteiro podem
também reivindicar o prêmio de "amigas
das crianças".
Aprendemos há muito tempo que "elogio em boca
própria é vitupério", mas algumas
estratégias corporativas e inúmeros discursos
grandiloquentes são calibrados para mentir. Pouco
valem os "quadrinhos nas paredes" quando há
muitos esqueletos escondidos nos armários e muita
sujeira debaixo do tapete. É mais fácil maquiar
o rosto do que limpar a alma. Há certos tipos de
trabalho que nem as melhores agências e assessorias
conseguirão fazer.
A gente viu , no último Campeonato Brasileiro, que
não adianta apenas um ótimo goleiro para salvar
uma nação inteira da tragédia. Como
o Timão (que desceu sobretudo pela incompetência
de sua gestão), algumas empresas bem que mereciam
ser rebaixadas. Eticamente, deveriam freqüentar a segunda
divisão. Na prática, sua imagem e reputação
estão há muito tempo na série B.
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* Wilson da Costa Bueno é jornalista, professor
do programa de Pós-Graduação em Comunicação
Social da UMESP e de Jornalismo da ECA/USP, diretor da Comtexto
Comunicação e Pesquisa.