Gislene Silva*
Embora o tema deste
debate seja "o presente e o futuro" do
jornalismo em agribusiness e o meio ambiente", eu gostaria
de refazer um pouco a trajetória de como a imbricação entre
a agricultura e a questão ambiental veio sendo construída
dentro da Revista Globo Rural. Por isso começo falando
um pouco do passado, para que a gente possa
compreender como o tema se dá na nossa prática profissional
de hoje e para qual futuro este jornalismo deve apontar.
Na segunda metade
dos anos 80, que foram os primeiros anos de publicação
da revista (lançada em outubro de 1985, está fazendo exatamente
14 anos), a preocupação da Globo Rural com o meio-ambiente
aparecia em grandes matérias sobre o Pantanal, a Amazônia,
sobre animais ameaçados de extinção (mico-leão-dourado,
o cervo do pantanal, ararinha azul), sobre a caça indiscriminada
de tartarugas, sobre peixes como o dourado, vítimas da poluição
dos grandes rios etc ... Todos esses assuntos foram capas
da revista, embora as matérias que tratassem estritamente
da prática agrícola pouco questionassem o modelo tradicional
de cultivo, baseado no uso pesado de mecanização, fertilizantes
sintéticos e defensivos químicos(todos os biocidas... inseticidas,
fungicidas, herbicidas) este tripé sustenta o clássico
padrão tecnológico instaurado pela revolução verde, movida
pela indústria do petróleo.
Essa prática de agricultura
intensiva veio somar danos aos já provocados pela agricultura
pouco tecnificada. E assim tínhamos então (na verdade,
ainda temos) dois problemas ambientais gerados pela agricultura:
1) os danos decorrentes
dos cultivos intensivos, com uso maciço de insumos químicos
e de mecanização -- que sempre foi uma prática de produtores
mais capitalizados;
2) e no outro extremo,
os estragos provocados por uma situação de pobreza, uma
vez que a concentração fundiária do país empurrou a grande
maioria dos produtores rurais para pequenas áreas, geralmente
terras mais vulneráveis à degradação, como várzeas e encostas.
(neste caso, a solução ainda é mais difícil, pois passa pelo ordenamento do acesso à terra e por políticas sociais de melhoria de renda não vou me estender neste ponto porque discussões sobre estas questões terão espaço em outras palestras e debates nos dois dias deste congresso).
Mas nos primeiros
anos da década de 90, as coisas começam a mudar. Ou
melhor, as mudanças começam a aparecer, uma vez que o Brasil
é muito grande e experiências isoladas há tempos vinham
se consolidando pelo interior do país. Aí já não eram apenas
a preservação dos animais em extinção, das áreas de mata
e rios que chamavam a atenção do jornalismo rural. E ia
além tbém das denúncias de tráficos de animais silvestres
e de desmatamentos ou exploração ilegal de espécies nativas.
(Abro um parênteses
aqui para esclarecer o seguinte: estou tentando descrever
grandes movimentos da revista quanto ao interesse ambiental.
O que não quer dizer que hoje não façamos matérias pontuais,
focadas numa reserva específica, num determinado animal
em risco de extinção ou num rio que começa a secar. Estou
descrevendo apenas grandes enfoques de uma revista rural
sobre questões ecológicas, que na verdade não segue uma
sequência histórica tão demarcada assim como pode parecer
na maneira como estou contando. Na verdade nós não mudamos
de uma prática para outra, nós apenas vamos acrescentando
novas abordagens).
E são essas abordagens
que começam a surgir nos anos 90.
No campo, inciava-se
uma prosa sisuda sobre os perigos dos agrotóxicos/os tais
"venenos". Era uma fala em voz baixa entre os
agricultores mais tradicionais. E em voz nada tímida entre
os ousados defensores e principiantes da agricultura orgânica,
que em suas primeiras aparições foram chamados de românticos,
nostálgicos a sociedade olhava estes"alternativos"
quase como remanescentes hippies. Nesse começo, até era
difícil encontrar fontes, especialistas de centros de pesquisa/universidades,
para dar entrevista sobre o assunto. E poucos tbém eram
os agricultores que adotavam a prática.
Nas cidades,
enquanto isso, a crítica contra a poluição ganha força também.
E começa-se a discutir a degradação ambiental nas periferias,
também instaladas em áreas frágeis de morros e mananciais
periferias que funcionam quase sempre como campos
de refugiados das zonas rurais. Porém, o grande momento
de afirmação da conscientização ecológica no Brasil aconteceu
com a ECO 92 Conferência das Nações Unidas
para o Meio Ambiente, com representantes de 180 países/105
chefes de Estado. O encontro instituiu de forma mais madura
a vinculação indissolúvel do binômio meio ambiente/desenvolvimento.
Desde então tornou-se corrente o uso do conceito de desenvolvimento
sustentável (definido pelo tripé: eficiência econômica,
prudência ecológica/com respeito ao estoque de recursos
naturais e eqüidade social/este o pé mais frágil da auto-sustentação,
e sobre o qual falarei mais adiante).
Bom, a Revista Globo
Rural acompanhava as mudanças. Começava a trazer
o enfoque ambientalista para dentro das matérias agrícolas.
Passou a publicar com freqüência reportagens dando destaque
a práticas agrícolas conservacionistas.
- No lugar da monocultura,
falávamos de rotação dos cultivos.
- Em vez de queimadas
e desmatamentos, o replantio de árvores nos altos
dos morros e a recuperação das matas das nascentes
e beiras dos rios (matas ciliares).
- No uso de máquinas,
a redução das operações (sugerindo o preparo mínimo/reduzido
do solo e mesmo divulgando com gosto o sistema de plantio
direto, feito sobre a palha da cultura anterior e sem
revolver o solo hoje uma prática extensamente disseminada,
principalmente na região do Cerrado).
- No trato de doenças
e pragas, apontávamos para a necessidade de reduzir os
excessos no uso de agrotóxicos e para a adoção de práticas
como o manejo integrado de pragas/através
do controle biológico.
- Passamos tbém a divulgar
a cobertura verde para proteger o solo contra erosão
e a incorporação de matéria orgânica para recuperar
sua fertilidade.
E já apontando
para uma visão mais integrada do ambiente, vieram as reportagens
sobre microbacias (que trata da harmonia entre solo,
água, mata, criação animal, lavoura e homem condições
sanitárias/moradia, da água para beber ao banheiro, do tratamento
correto dado a todas formas de resíduo etc). Pela primeira
vez os produtores são vistos como conjunto, cuja ação de
um na sua propriedade causa interferência na vida do vizinho.
Passavam a ser enfocados como comunidade, homens e natureza
ajustando uma convivência no mesmo espaço.
Quanto às criações
animais, os avanços não foram tão expressivos, mas
há casos de criadores de suínos e frangos que tratam dejetos
para não poluir a água ou utilizam os resíduos para fazer
compostagem. Na pecuária tbém há algumas tentativas para
diminuir os estragos. Pasto rotativo, piquetes e outros
procedimentos que evitam a criação extensiva, cuja baixa
densidade acaba exigindo áreas a perder de vista, e faz
com que a pecuária continue sendo responsável pelo desmatamento
e ocupação devastadora do interior de muitos estados brasileiros.
Essas mudanças
vieram sim pelos esforços de conscientização dos pesquisadores,
dos extensionistas, das cooperativas e associações, das
ONGs e, por que não, do trabalho da imprensa especializada
e aqui o reconhecimento do papel especial do programa
Globo Rural de televisão neste processo , pelo
pioneirismo ao ser o precursor, pela sua abrangência, profissionalismo
e credibilidade. Mas estes esforços de conscientização respondem
só em parte pela adoção daquelas mudanças, que foram adotadas
menos por livre e espontânea vontade dos agricultores do
que precisão -- falo da grande maioria; as exceções continuam
sempre como belos exemplos, motivadores inclusive das mudanças.
O que impressionou e pressionou de fato os agricultores
é que agressão contra o meio ambiente, provocada pela exploração
intensiva do solo e pelo descuido com a água, vinha se traduzindo
na perda de milhões de toneladas de solo fértil por ano
(600t jun95). A erosão comeu, literalmente, o chão de
muitos agricultores e até fez nascer desertos onde antes
havia colheitas fartas (ex.mais gritante RSul). E aí não
havia agroquímicos que salvasse a lavoura, pelo contrário
até, com surgimentos de novas doenças e ervas daninhas ainda
mais resistentes. Até mesmo a irrigação, tecnologia sofisticada/pivôs
centrais que foi usada de forma exagerada, trouxe problemas
(salinização, doenças de solo). Os produtores sentiram os
reflexos de tudo isso nos próprios bolsos, ao enfrentarem
redução de produtividade, aumento de custos e,
consequentemente, queda no rendimento econômico.
Nesse contexto, tornou-se
urgente a adoção de práticas conservacionistas. Porque o
solo fértil e a água foram reconhecidos como patrimônio,
n/ apenas a escritura e as cercas. O desafio a ser enfrentado
tornou-se então: produzir cada vez mais/aumentar a oferta
de alimentos, mas sem degradar os recursos naturais. A meta
de altas produtividades passou a ter como parceira a preocupação
ambiental (embora ainda prevalecendo a distância entre teoria
e prática).
E aí,paralelamente,
a agricultura orgânica ganhou eficiência e
passou a ser respeitada como atividade economicamente viável.
Mais que isso até: virou nicho de mercado e passou a dar
aos produtores remuneração diferenciada pela qualidade do
produto.
Tem um bom exemplo disso
no último número da Revista, neste mês de outubro: um produtor
do Paraná que começou com pequeno plantio orgânico de hortaliças,
depois abriu um restaurante de comida natural e hoje é o
maior exportador de soja orgânica no Brasil (em 1994 exportou
200 toneladas de grão e neste ano deve fechar em 7 mil toneladas).
Ele tem vários produtores parceiros para produzir a soja
orgânica, que recebem em média um pagamento 30 a 120%
acima do preço pago no mercado da soja comum.
São inúmeros os exemplos
de produtos que são hoje valorizados pela qualidade ambiental/caráter
saudável de sua produção. Mas é bom lembrar que se trata
não apenas de nichos de mercado descobertos e conquistados,
mas de exigências do próprio mercado. É o caso mesmo da
carne produzida no Brasil, que para ser exportada tem que
cumprir requisitos de sanidade.
Todos os avanços na
produção de alimentos com nenhum ou menor uso de agroquímicos,
criação de animais sadios, tratamento de resíduos etc. vêm
revelar mais do que uma " tendência mundial de adoção
de métodos mais naturais de produção e consumo de alimentos
limpos" . Sua principal contribuição é a comprovação
de que se pode enfrentar com competência (técnica/econômica)
a pretensão da ciência agronômica ocidental de que a produção
agrícola poderia dominar a natureza, sem se preocupar com
os danos ao meio ambiente e ao próprio homem (estão incluídas
aqui a pecuária e outras criações animais, com a mesma pretensão).
Atualmente, dois assuntos são exemplares na compreensão
dos limites da dominação do homem sobre a natureza, e os
dois envolvem o meio rural: os problemas mundiais com escassez
da água potável e as turbulências climáticas (que envolvem
os oceanos, o aquecimento da terra, e claro dá nó nas estimativas
de safras. Quando não é o El Niño é a La Niña).
Por isso quando hoje
falamos em agribusiness e meio ambiente devemos ter uma
compreensão para além do uso responsável dos recursos naturais.
Sempre surgirão novos nomes para dizer coisas parecidas.
"Desenvolvimento sustentável" e, mais recentemente,
"multifuncionalidade da agricultura". Não importa
o nome, mas o conceito. A compreensão de que a natureza,
no caso aqui o meio rural, não se resume a um substrato.
Ele é mais do que um simples entroncamento de safras e insumos.
Que além de produzir alimentos agrícolas e lucros a partir
de novas e eficientes tecnologias, inclusive na agroindústria,
o campo produz história, música, geografia, turismo, culinária,
artesanato, festas populares, arquitetura.
Produz cultura.
Produz sociedade.
Por isso já se fala
hoje em novas funções não-agrícolas do campo, empregos fora
da produção estritamente agrícola(dar exemplos/serviços;
educação, saúde etc). Fala-se tbém da necessidade de rever
as conexões entre o rural e o urbano, levando em
conta a atual de diluição das fronteiras geográfica, cultural
e tecnológica entre campo e cidade. (E é bom lembrar:
porque sozinhos, nem o campo nem a cidade resolverão o problema
de preservar o patrimônio da natureza, nem tampouco garantir
a eqüidade social).
Um jornalismo
que se pretende atual sobre as atividades do meio rural,
ou se preferirem "sobre o agribusiness", o agronegócio,
deve adotar como parâmetro o adjetivo rural, e não o
reducionismo do termo agrícola, fechado na eficência
técnica, sem levar em consideração o ambiente e o homem
que nele vive.
(Me lembro que em
1986/87, o professor Wilson Bueno e eu já discutíamos, no
curso de mestrado, quando éramos orientador e orientanda,
sobre a impropriedade de se falar em jornalismo agrícola
e não em jornalismo rural). Ainda hoje é preciso confirmar
como objeto do nosso jornalismo o mundo rural
e, em tempos de globalização, tentar recuperar a cumplicidade
entre o território e sua gente.
Quando falamos
em agribusiness é mais nítida a urgência em reforçar a sustentação
do tripé, que tem deixado manco o desenvolvimento auto-sustentável:
além do requisito da eficiência agrícola/tecnológica
, do respeito pela natureza e pela saúde dos
consumidores, temos que reafirmar a dimensão social..
Aí, pode-se até pensar que é o mercado quem vai provocar
a mudança, através dos certificados de ISO 14.000 etc,
em que compradores/consumidores/clientes exigem a comprovação
de que não está sendo usada mão-de-obra infantil na produção
ou poderão exigir que os trabalhadores rurais envolvidos
na aplicação de agroquímicos na lavoura estejam devidamente
equipados para não serem intoxicados.
Mas é presunção,
e irresponsabilidade nossa, pensar que o mercado tudo pode,
tudo provê, organiza, soluciona. Porque a prática comum
é o mercado tratar a natureza como insumo, o passado e a
cultura local/regional como desprezíveis e os indivíduos
como descartáveis.
É claro que o mercado,
ele mesmo, já descobriu que a questão social "agrega
valor". Ao produto. (lembremos novamente
do exemplo anterior da mão-de-obra infantil). Mas as pessoas
que trabalham no meio rural, lá moram, namoram, casam, trabalham,
criam seus filhos, rezam e aos domingos jogam e assistem
peladas de futebol nos milhares campinhos do interior (ou
assistem aquelas outras peladas em beiras de rio...) são
pessoas que estão vivendo a vida. Estas pessoas não estão
lá para "agregar valor ao produto", querem sim
ser elas mesmas valorizadas. Por isso, no olhar do jornalismo
rural daqui pra frente, o homem deve vir à integrado às
paisagens, mas à frente dos campos de arroz, de algodão.
O homem deve ser
maior do que a colheitadeira.
Posso ser criticada
como romântica neste diálogo com o "agribusiness",
mas pra mim é claro que a questão da produção de alimentos
hoje não persegue mais o objetivo de crescer em quantidade
para matar a fome de milhões de pessoas no nosso planeta.Todos
sabemos que acabar com a fome hoje não é uma questão de
tecnologia agrícola ou capacidade de produzir mas de distribuiçãode
renda. Por isso o embate deve ser contra a lógica perversa
do mercado. Que o mercado trate todos nós como clientes/respeite
até nossos direitos de "consumidores" e
até valorize aspectos sociais para vender mais e melhor,
vá lá, isso é o mercado.
Mas nós jornalistas
e profissionais outros que lidam com o meio rural não podemos
ser seduzidos, ingenuamente, por essa lógica. Devemos tratar
produtores, trabalhadores rurais, fontes e leitores, todos
como "cidadãos". Só assim conseguiremos
contrabalançar a força do mercado e da tecnologia, uma força
por princípio e fundamento desigual, que se alimenta do
desequilíbrio.
É através deste jornalismo
rural largo, generoso com as identidades e com as culturas
regionais, que vamos contribuir com "referências indispensáveis
para que um país e um povo possam pensar o seu futuro.
Ou melhor, " possam ter futuro".
OBS: Comunicação apresentada no 1º
AGRICOMA - Congresso Brasileiro de Comunicação
em Agribusiness e Meio Ambiente, promovido pela Comtexto
Comunicação e Pesquisa, em outubro de 1.999,
em São Paulo.
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* Gislene Silva é formada em Jornalismo pela Universidade
Federal de Juiz de Fora, MG, e fez mestrado em Comunicação
Rural no Instituto Metodista em São Bernardo do Campo.
Há 9 nove anos trabalha como repórter da Revista
Globo Rural e no próximo ano termina o doutorado
em Antropologia na PUC de SPaulo -- desta vez ela estuda
"o imaginário rural dos leitores urbanos"
da Revista, procurando analisar "o mito da casa no
campo" entre assinantes da revista que vivem na metrópole
paulistana e não possuem nenhum tipo de propriedade
rural. Doutorou-se em 2.000 em Antropologia na PUC-SP.